terça-feira, 18 de março de 2014

Entrevista de Miller acerca do incesto no caso Fritzl

JACQUES-ALAIN MILLER E O CASO FRITZL

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Num mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso.
- Guy Debord
O psicanalista Jacques-Alain Miller examina para Le Point a notícia que abalou a Áustria, onde se descobre como Josef Fritzl, de 73 anos, seqüestrou sua filha por vinte e quatro anos e teve com ela sete filhos. Para Miller, o que sai do comum não é o incesto, é «a regularidade invariável de um ato imundo».
Entrevista.
Le Point: O que pode levar um indivíduo a um tal grau de perversão?
Jacques-Alain Miller: Uma boa educação, à maneira antiga, elevadas virtudes morais... Eu me explico. Por quais traços Das Inzest-Monster, como o chamam os austríacos, permanecerá nos anais clínicos e policiais? Vocês bem vêem que não deverá ser unicamente pelo fato do incesto, prática muito difundida, nem tampouco pelo número de suas vítimas. Se ele é excepcional, o é pela tenacidade, constância, resistência. O que sai do comum é a regularidade invariável de um ato imundo, o método, a minúcia e o espírito de seriedade investidos na realização solitária de um crime abominável único, estendendo-se por um quarto de século. Nenhum erro, nenhum passo em falso, nenhum ato falho. Total quality. Estas são qualidades eminentes, tradicionalmente atribuídas ao caráter germânico. Postas a serviço da ciência e da indústria, elas fizeram a reputação dos países de língua alemã. Aliás, ele era um engenheiro eletricista e dizia à sua mulher que descia ao porão para desenhar planos de máquinas.
Se Gilles de Rais na França, Erzsebeth Bathory na Hungria, grandes feudais dos séculos XV e XVI, permanecem nas memórias é, ao contrário, pela desordem de sua conduta, seus inúmeros estupros e assassinatos. O austríaco, pequeno notável provinciano, também é um tirano, mas puramente doméstico. Ele leva uma existência perfeitamente «caseira», mas desdobrada. É fiel à sua filha Elizabeth, único objeto de seu gozo, da qual faz de algum modo, uma segunda esposa. Dá a ela sete filhos, o mesmo número que tem com sua esposa legítima. Parece que não se pode acusá-lo nem por aborto nem por contracepção: é um bom católico.
Ele opera na maior discrição, sua conduta não ocasiona nenhum escândalo, tanto mais que ele fez essa segunda família viver debaixo da terra, em cubículos cegos nos quais não dá para se ficar de pé, à maneira de Louis XI.
De todo modo, não é sua educação que pode explicar sua conduta!
Fomos informados de que ele foi criado sem pai, por uma mãe que o surrava todos os dias. O fato não deve ter ficado sem conseqüências. Pode-se sempre dizer que ele queria se vingar do objeto feminino e se precaver contra seus caprichos... Mas teríamos muita dificuldade em deduzir daí o seu vício: outras saídas eram possíveis. Em 1967, quando nasceu Elizabeth, seu quarto filho, ele foi detido por causa de um estupro; teria cometido outros. Tudo se passa como se ele tivesse decidido se emendar e limitar-se a uma bigamia incestuosa. Só se conhece dele algumas escapadas sexuais na Tailândia, com colegas, gente importante da cidade. Ele voltava bronzeado, em plena forma, para junto de sua pequena família, que nunca via o sol.
Ele era uma espécie de Dr Jekyll-Mr Hyde ?
Ele era a um só tempo um Pai severo, o Pai da lei, cujo rigor implacável surpreendia aqueles que o viam gerir sua família do andar de cima e, com sua família do andar de baixo, era um Pai gozador, fora da lei. Nesses dois papéis, até certo ponto, ele foi irrepreensível: pensem que ele garantiu, sem falhar um só instante, a subsistência de todos os seus. Ao mesmo tempo, era um escroque, sem dúvida: de suas operações imobiliárias restam apenas dívidas consideráveis. É o Estado que deverá pagar os anos de psicoterapia e reeducação que serão necessários à família do andar de baixo. O montante disso já teria sido avaliado em € 1milhão.
A cultura patriarcal, o sinete católico, a religião do «cada um no seu canto», que marcam a Áustria, tiveram algum papel?
Alguns desses traços valem para a Sicília. Ora, tem-se dificuldade de imaginar uma tal história em Siracusa ou Trapani: lá, as pessoas que vivem entre quatro paredes sem sair são mais os mafiosos perseguidos pelos carabineiros.
Mas será um acaso o fato de, depois do «caso Kampusch», essa notícia irromper na Áustria?
Ocaso Fritzl depois do caso Kampusch, isso faz sentido, necessariamente. Enquanto os Estados Unidos são a terra abençoada dos serial killers, a Áustria se alinha com a Bélgica quanto aos perversos caseiros de subsolo, se assim posso dizer. O presente caso se distingue por sua atmosfera de obediência cega. Não apenas a de sua mulher: Fritzl alugava quartos em sua casa, uma centena de locatários ali desfilou ao longo do tempo, ele lhes dizia para não descerem em seu bunker e nenhum deles cogitou infringir essa proibição. Deploram-se de bom grado as infrações cometidas, nos dias de hoje, a respeito da vida privada: é uma repreensão que não se fará aos austríacos. Na Ybb strasse, tudo estava em ordem, a fachada nos trinques, a geladeira subterrânea bem abastecida, as roupas bem lavadas e passadas. Via-se televisão em família. O bunker? Era um abrigo anti-atômico familiar, construído com a ajuda de subvenções oficiais. Um grande crime popular é sempre um fato social total, para retomar a expressão de Marcel Mauss: é um microcosmo da sociedade, nele, ela se reflete por inteiro. Fritzl: criminoso, talvez, mas, antes de tudo, Korrekt. Sistemático. Nenhum escorregão. Nada de inconsciente. Nenhum sentimento de culpa.
Do ponto de vista da história passada, será que se pode falar de um povo que «recalca» incessantemente, recusando olhar a realidade de frente?
É o que dizem os ingleses. Eles vêem em Fritzl um símbolo da Áustria. Essa é também a idéia do romancista Josef Haslinger. A casa natal de Hitler fica à uma hora e meia de Amstetten pela auto-estrada, Mauthausen mais perto ainda. O chanceler anuncia uma grande campanha internacional de relações públicas para melhorar a imagem da Áustria. Espíritos práticos lhe pedem principalmente verba para os serviços sociais.
Um desenho do Times de Londres mostra a Áustria deitada no divã: atrás dele, Sigmund Freud. Podemos lembrar que o país cuidou para erradicar a psicanálise, ou pouco faltou. O advogado pleiteará alienação mental.Tendo em vista o extremo domínio de si no crime e a duração do delito, a irresponsabilidade não é evidente.