terça-feira, 15 de maio de 2018

O manejo da transferência nas psicoses extraordinárias e ordinárias


Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência*

Éric Laurent

Escolhi este título para questionar diante de vocês o uso que podemos fazer da transferência, de acordo com as indicações que Lacan nos dá, naquilo que Jacques-Alain Miller chamou de seu último ensino, que começa com o seminário Mais, ainda (1972-1973)[1]. Mantive o termo “loucura” pois ele recebe um novo acento a partir do texto que comporta o dizer provocativo de que “todo o mundo é louco, isto é, delirante”[2], texto que data desse período. Escolhi também o termo disrupção, pois é o título sob o qual mantivemos esse ano na ECF um ensino, através de Nouria Gründler, Dominique Laurent e François Ansermet, e também porque é o termo escolhido por J.-A. Miller como um sinônimo da efração que constitui o gozo na homeostase do corpo, fundamento da repetição do Um: “nos casos aos quais temos acesso pela análise, seu modo de entrada [do gozo] é sempre a efração, isto é, não a dedução, a intenção ou a evolução, mas a ruptura, a disrupção em relação a uma ordem preliminar feita da rotina do discurso pelo qual mantêm as significações, ou da rotina que imaginamos do corpo animal”[3]. A disrupção tem aí um duplo sentido. É ao mesmo tempo a efração primeira e também suas réplicas, que ocasionalmente perturbam as diferentes homeostases ou estabilizações que o sujeito pôde estabelecer como defesas contra a efração súbita de um gozo desconhecido a ele.
Mantive também o termo “loucura”. Eu poderia ter usado o termo delírio para englobar as psicoses ordinárias, as outras, e seu modo de tratamento, uma vez que em seu seminário de 1976, Lacan inclui a psicanálise no delírio. “A psicanálise não é uma ciência [...] É um delírio – um delírio que espera-se que contenha uma ciência”[4]. A generalização da abordagem do sujeito pela foraclusão generalizada é paga a um preço que J-A Miller destacou em sua apresentação do último Lacan. Esse preço é o quase desaparecimento do uso do termo transferência nos textos de Lacan. Notemos já que a abordagem da transferência nas psicoses, antes extraordinárias, depois ordinárias, não deixou de nos colocar questões, uma vez que o estatuto da relação com o Outro foi especialmente colocado na berlinda desde a queda final da “Questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, que “introduz... a concepção a ser formada do manejo, nesse tratamento, da transferência”[5], para não dizer nada sobre ela, uma vez que isso seria ir “para-além de Freud”[6].
O fim da “Questão preliminar” pára no ponto onde o Deus-pai é apagado diante do Deus parceiro de gozo, “depois de declarada a falência do Nome-do-Pai - isto é, do significante que, no Outro como lugar do significante, é o significante do Outro como lugar da lei”[7]. Lacan não diz falência do Outro, mas falência do Nome-do-Pai. Acontece então que, segundo a expressão de Schreber, antecipando George Bataille, “Deus é uma p...”[8], em outras palavras, um parceiro de gozo. Essa revelação é uma redução que é a chave do manejo da transferência com um parceiro de gozo sem a garantia do Nome-do-Pai. Não estaria ela situada como preliminar à grande redução final do último ensino de Lacan? E já a primeira redução introduz múltiplas dificuldades. São essas dificuldades que abordamos em artigos recentes, reunidos no excelente último volume da revista El psicoanalisis consagrado a “O que não se sabe sobre a transferência”, por Miquel Bassols e Vicent Palomera.
Vicente Palomera situa muito bem a questão da transferência nas psicoses. "Enquanto o trabalho da transferência pressupõe um laço libidinal com um Outro na posição de objeto, no trabalho do delírio é o sujeito como tal que toma a seu cargo, solitariamente, não o retorno do recalcado (como dizemos na neurose), mas os retornos no real que o assolam. Ao passo que não há auto-análise do neurótico, o delírio é um tipo de auto-elaboração. O problema é de saber se esse trabalho pode se inserir no discurso analítico e, se sim, como? Pode o ato analítico incidir sobre esse auto-tratamento do real como no trabalho de transferência?” [9] 
Miquel Bassols, por sua vez, desde o Congresso da NLS em Dublin, em julho de 2016, sugeriu que o principal efeito da introdução da "psicose ordinária" - essa categoria instável que desafiava a categorização e parecia sujeita ao paradoxo de Russel – se ordenava apenas pelo encontro com a contingência da transferência. Ele concluiu seu texto deste modo: "As psicoses ordinárias são clinicamente ordenadas apenas se os fenômenos são precipitados, organizados de acordo com a lógica da transferência. É somente assim que as psicoses ordinárias se revelam ordenadas sob transferência "[10]. Essa perspectiva voltaria a se servir da psicose ordinária para reexaminar a questão da transferência nas psicoses em geral. Aqui também, a passagem do regime do patriarcado ao parceiro de gozo [11] abre, em suma, um duplo caminho. Por um lado, o manejo da transferência nas psicoses nos diz algo sobre a abordagem da transferência no último ensino. Por outro lado, o último ensino nos permite ir mais longe e nos livrar de certos embaraços que nos prenderam em nosso ato.

Da transferência sem Nome-do-Pai à transferência sem o Outro. 

Em seu último ensino, Lacan vai resolutamente para além de Freud, mas sem, no entanto, levantar o véu diretamente sobre o manejo da transferência. Ele chega mesmo a rebaixá-la à antiga noção de sugestão: "A psicanálise opera – uma vez que de tempos em tempos ela opera – por um efeito de sugestão? Que o efeito de sugestão se mantenha, supõe-se que a linguagem mantém o que se chama o homem. Não é à toa que uma vez expressei certa preferência por um livro de Bentham que fala da utilidade da ficção."[12]. E J.-A. Miller dá a essa aproximação todo o seu peso: "Pensar que a interpretação é um efeito de sugestão é, eu disse, enorme. É enorme porque deixa de lado a transferência. Além disso, a transferência é, de fato, o que está ausente nesse ultimíssimo ensino, pelo menos nos Seminários do Sinthome e do L’Une-bévue ". Lacan, no entanto, nos deixa, como nota J.-A. Miller, indicações para "reinventar a psicanálise" com ele, especialmente fazendo essa ligação entre sugestão e ficção. Deve surgir disso que a perspectiva do Sinthome é aquela dos Uns separados e não articulados. "Há aqui um radical: a cada um seu sinthoma, [...] que convida a apreender cada um como um Um absoluto, isto é, separado[...]. A transferência é aquela que é aplainada pela perspectiva do ultimíssimo ensino de Lacan. É uma perspectiva que toma a prática da análise na direção contrária."[13]
Mas essa direção contrária, não seria ela conveniente, especialmente ao nosso tecido da prática psicanalítica do lado das loucuras, onde não podemos nos sustentar pelo Nome-do-Pai, na época do sinthome e do falasser? Essa maneira de deixar a transferência de lado, uma vez que o sujeito não é mais abordado a partir do Outro, não poderia ela nos libertar, já que precisamente "Lacan passa por cima da transferência, porque [...] a transferência supõe um Outro bem estabelecido e bem assentado. Há transferência quando já se supôs o saber que significaria alguma coisa "[14]? Ora, esse Outro bem assentado é aquele que desvanece nesse campo da clínica que nos interessa. Da mesma forma, o querer dizer algo está em questão: generalização, radicalização e direção contrária! Estas são as perspectivas a partir das quais eu gostaria de abordar o nosso tema.
Nos Seminários 23 e 24, não há quase nada sobre a transferência, exceto uma passagem precisa do Seminário de 10 de maio de 1977, a qual gostaria de comentar com as indicações do último curso de J.-A. Miller como um todo. De maneira característica, nessa sessão do seminário, Lacan parte daquilo que não há. Do que é marcado pelo negativo, a transferência negativa, para chegar à transferência positiva, que não tem existência definida. Ele evoca o recurso ao "isso se sente" [ça s’y sent], como no Seminário 23, para designar um real que escapa a poder ser escrito como existência. Podemos simplesmente nomeá-lo. O raciocínio deve ser seguido passo a passo. Nós nomeamos alguma coisa negativamente, para assinalar que ela não existe, porque sentimos que há uma existência da qual não conseguimos captar a consistência lógica.
"[...] eu tenho que escorregar - é assim que se faz - entre a transferência que chamamos, não sei porque, negativa, e ... não sabemos sempre o que é que a transferência positiva. Tentei defini-la sob o nome do ‘sujeito suposto saber’" [15].
É esse nível da hipótese com a qual Lacan quer romper. O efeito da hipótese, da ficção, é transferir para o analista o lugar da causa da produção de saber em análise. A transferência é assim reduzida à sua lógica atributiva. O analista não deve esquecer que não é o seu ser que é a mola da operação analítica. Lacan descobre aqui sua veia combativa contra aqueles psicanalistas da IPA, que sustentavam que o analista opera com o que ele é: "O que importa ... não é tanto o que o analista diz ou faz mas o que ele é." Conduzindo a uma proposição louca: "Na França, o doutrinário do ser ... mostrou-se direto nessa solução: o ser do psicanalista é inato" [16].
Lacan varreu essa espessura do ser do psicanalista ao enfatizar, em seu ensino clássico, que o analista ocupa o lugar de uma suposição ou de uma atribuição.
"Quem é suposto saber? É o analista. É uma atribuição, como já indicado pela palavra suposto. Uma atribuição é apenas uma palavra. Há um sujeito, algo que está acima, que é suposto saber. O saber é, portanto, seu atributo. Há apenas um problema: é impossível dar o atributo do conhecimento a quem quer que seja. "[17]
A oposição entre juízo de atribuição e juízo de existência em Freud é uma oposição na qual Lacan se baseou de várias maneiras no curso de seu ensino. Aqui, a referência ao juízo de atribuição vem enfatizar acima de tudo que não se trata de um juízo de existência.
"Aquele que sabe, na análise, é o analisando. O que ele desenrola é o que ele sabe, exceto que é um outro (mas existe um outro?) que segue o que ele tem a dizer, para saber o que ele sabe. Esta noção de Outro, eu a marquei num certo grafo com uma barra que o rompe. "[18].
A notação do analista como aquele que segue o que o analisando tem a dizer, é consonante com a descrição da posição do analista como testemunha ou secretário da elaboração que conduz o sujeito psicótico, após a falência do nome do Pai. Mas além disso, devemos entender a ruptura do analista com sua ancoragem na suposição. Ele não está no lugar do sujeito suposto saber, ele está no lugar daquele que segue. Há aí um equívoco entre o "eu sou", a primeira pessoa do indicativo do verbo ser, e o "ele segue", terceira pessoa do indicativo do verbo seguir.
Qual é então o status do Outro rompido que se deduz? Precisamos já sublinhar a originalidade do termo rompido, que vem no lugar de barrado, que Lacan usava até então. Por esse deslocamento, ele enfatiza o fato de que se trata de uma questão de existência, do que pode ser afirmado ou negado a partir desse juízo. "Mas romper é negar? A análise propriamente dita afirma que o Outro nada mais é que essa duplicidade. “Há o Um, mas não há nenhum Outro"[19]. A formulação é radical e sutil "nenhum Outro" [rien d’Autre = “nada mais”].
A barra fazia parte do ensino clássico, a ruptura acontece agora entre o Ser e o que existe. Lacan continua enfatizando que a barra perdida recai sobre o Um de uma maneira estranha. É preciso para isso separar o Um e o diálogo. O Um pode falar sozinho. "O Um, eu disse, dialoga sozinho, uma vez que recebe sua própria mensagem de forma invertida. É ele quem sabe, e não o suposto saber "[20]. Aqui encontramos a auto-elaboração que Vicente Palomera evocou no coração do trabalho do delírio, mas Lacan argumenta que essa auto-elaboração está fundada desde sempre na fórmula geral da comunicação. Cada um recebe sua mensagem de forma invertida. Nossa formulação fundamental da interpretação "Eu não faço você dizer isso ..." é assim generalizada. Não há mais necessidade da ficção do eu no lugar de supostamente extrair o saber do lugar do analisando. O analisando sabe, e é suficiente que ele se endereçe ao Outro que não existe para que se produza o efeito de retorno.
Mas isso só pode operar se dermos a esse saber a sua dimensão de singularidade radical. Não podemos saber do que isso se trata antes que esse saber seja recebido em sua forma invertida. Essa lógica acompanha a suspensão radical de qualquer relação de comunidade entre o analisando e o analista. É uma consequência da suspensão do “todos” que subsistia sob a suposição, o fantasma de um traço comum entre o analisando e o analista. Victoria Horne-Reinoso, em um texto publicado na Revista da ECF, ressaltou a importância do pré-requisito de "todas as mulheres são loucas... mas não totalmente" para passar à separação dos Uns que sustentam a afirmação de que "todo mundo delira" [21].
"Propus também isso, que se enuncia do universal, mas para negá-lo - eu disse que não existe “todos”. É assim que as mulheres são mais homem do que o homem. Elas não são não-todas, eu disse. Os “todos” não têm traços comuns. No entanto, eles têm esse, que é o único traço comum - o traço que eu disse unário. Ele se apoia no Um. Existe o Um. Eu repeti isso agora para dizer que existe o Um, e nada mais [rien d’Autre]."[22]

Transferência e Sentimento: o une- bévue e o “fazer verdade”

Lacan conclui sua reformulação da transferência em um ponto-chave. A articulação entre a "transferência negativa" e o ódio a que ele tinha se referido até então como paixão do ser, como a paixão que visa por excelência o ser do Outro. O Outro não existe, mas a paixão odiosa existe. Justamente porque não se detém nos atributos do Outro, visa o real. Ela visa algo mais profundo, que é da ordem do ódio ao próximo. Em nosso último Fórum sobre O Estrangeiro em Roma, recordei a função do ódio, enfatizada por J.-A. Miller: "No ódio ao Outro, é certo de que há algo além da agressividade. Há uma constante dessa agressividade que merece o nome de ódio e que visa o real no Outro. O que faz com que esse Outro seja Outro, para que possamos odiá-lo, odiá-lo em seu ser? Bem, é o ódio ao gozo do Outro. Essa é até mesmo a forma mais geral que pode ser dada a esse racismo moderno tal como o verificamos. É o ódio ao modo particular com o qual o Outro goza"[23]. O ódio está do lado do real, e mesmo que o Outro não exista, o ódio vem primeiro em relação ao amor. É um ponto de rejeição, de expulsão do Outro que remonta ao Ausstossung, à expulsão primordial que situa o sujeito frente ao Outro. É isso o que Lacan encontrou lendo a Verneinung de Freud desde a fase clássica de seu ensino. "Porque é assim que se deve compreender[...] a Ausstossung aus dem Ich, a expulsão para fora do sujeito. É esta última que constitui o real, na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora da simbolização"[24]. É sobre esse pano de fundo que devemos ler a introdução feita por Lacan, em contraponto à separação dos Uns, do lugar do sentimento que inclui em sua nova definição o ódio e o amor. "Há o Um, e isso significa que há, ainda assim, o sentimento, esse sentimento que eu chamei, de acordo com as unaridades [unarités], o apoio disso que é preciso que eu reconheça, o ódio, como um ódio parente do amor [...]"[25]. Essa hainamoração é a consequência da separação do gozo dos outros Uns. Constatei em Roma o fato de que "Conhecer isso, saber das aporias do amor e do gozo na vizinhança do próximo não nos condena nem ao cinismo nem à imobilidade, ou à constatação da presença irredutível do ódio ou do mal. "[26] Aqui também, saber que há a hainamoração não condena ao imobilismo por medo de provocar o ódio.
Lacan dá lugar, a partir do real do ódio, a uma outra dimensão. Ela se impõe a partir do tropeço [achoppement]. Pois o “falar sozinho” do Um não está isento dessa dimensão, pelo contrário. O traço do Unário provoca o traço do equívoco [l’Une bévue]. “Não há nada mais difícil de captar do que esse traço do une-bévue, que traduzi por l’Unbewust, que significa inconsciente em alemão. Mas traduzido por une-bévue, isso quer dizer uma outra coisa – um obstáculo, um tropeço, um deslizamento de palavra a palavra”[27]. Vamos dar uma olhada nessa nova versão de tropeço isolada por J.-A. Miller: “Em seu Seminário dos Quatro conceitos [Lacan] define o inconsciente pelo tropeço, isto é, pelo une-bévue. Mas em seu Seminário 24, isso significa outra coisa. Lá, o tropeço ou o deslizamento de palavra em palavra, como fenômeno, se situa em um tempo anterior àquele onde pode aparecer o inconsciente. O inconsciente aparece no une-bévue apenas na medida em que acrescentamos uma finalidade significante, na medida em que acrescentamos uma significação”[28].
E é aí que se insere uma nova versão da transferência positiva. É uma transformação pelo acréscimo de sentimento, uma transformação pelo acréscimo de significação que permite um novo uso do parceiro de gozo para superar os obstáculos do une-bévue do sujeito confrontado pela lalíngua e sua instabilidade, seus deslizes permanentes. "Lacan dá um nome a essa transformação por acréscimo de significação. Ele se refere a isso como um fazer-verdadeiro [faire vrai]: "A psicanálise é o que faz verdadeiro... O inconsciente vem depois, porque acrescentamos sentido: Nós adicionamos um toque de sentido, mas ele permanece um semblante" [29].
O semblante permanece então sujeito a um regime distinto da Verdade. O semblante, submetido ao "fazer verdadeiro", permite ao sujeito restaurar uma homeostase, apesar dos tropeços, apesar da instabilidade fundamental da lalíngua, apesar da homofonia primordial[30]. É necessário então o apoio do analista, para além da função da testemunha, do suporte, do secretário. Ele é aquele que faz verdadeiro o tropeço. "É claro que o analisando produz o analista, disso não há dúvida. É por isso que me questiono sobre esse estatuto do analista, a quem deixo o seu lugar de fazer verdadeiro, de semblante[...] "[31].
O que foi apresentado, no tempo da "Questão Preliminar", como o horizonte de um tratamento possível da psicose, uma estabilização da metáfora delirante graças a uma ficção não-edipiana, é agora generalizado na forma de uma homeostase regida pelo princípio do prazer como defesa contra a disrupção do gozo. Mas Lacan introduz aí uma nova dimensão ao considerar que a homeostase do princípio do prazer é sinônimo de repouso e sono. J.-A. Miller deu uma transcrição dessa versão da psicanálise que constata o Outro rompido e restabelece um lugar do analista como semblante, entendido no sentido de um fazer novo: o fazer verdadeiro. Esse fazer verdadeiro se opõe ao fazer ser contemporâneo do Outro, que inclui o significante da Lei [32]. "Vemos então em que consistiria a psicanálise. Ela consistiria em reconduzir ao princípio do prazer através do efeito de sugestão. [...] A sugestão é o efeito natural do significante. É assim que entendo porque Lacan pode dizer que há contaminação do discurso pelo sono[...]. O que é que Lacan desenha como o uso do que chamamos, chamávamos, de interpretação? É instrutivo ver que ele então traz de volta o princípio do prazer, e que reconhece para ele um lugar no nível do Um"[33]. Ao final do percurso, a sugestão é reconduzida ao seu fundamento primeiro: o impacto do significante no corpo, permitindo um certo tratamento da disrupção do gozo, seu temperamento em direção a uma homeostase graças à auto-elaboração de uma ficção não-padrão. Essa é a importância da definição que Lacan dá do fim da análise nas conferências americanas de 1975. "Uma análise não deve ser levada longe demais. Quando o analisando pensa que está feliz de viver, basta "[34]. É preciso entender que essa felicidade de viver, essa satisfação, é uma satisfação do Um. Ela se situa ao contrário da satisfação articulada ao Outro, aquilo que Lacan indicou em "Função e campo ..." onde " a questão do término da análise é a do momento em que a satisfação do sujeito encontra meios de se realizar na satisfação de cada um, isto é, de todos aqueles com quem ela se associa numa obra humana. [35]". J.-A. Miller comentando essa passagem em seu último curso acha isso "desconcertante" [perplexifiant]. "Não percebemos exatamente que aqueles que se associam a uma obra humana, seja ela uma escola ou um partido, brilham pela compatibilidade de sua satisfação, percebemos ao invés disso que eles se arrancam os cabelos" [36].
No entanto, Lacan abre lugar, em contraponto à ficção auto-reguladora e à satisfação do Um, para uma nova abordagem da interpretação. Aquela que funciona na direção contrária do uso comum da ficção, como um despertar.

A interpretação como jaculação

No Seminário 22,  lição de 11 de janeiro de 1975, Lacan questiona se a nova formulação dá o efeito de sentido que a interpretação dá, a partir do momento em que as três consistências R, S, I são homogêneas. E ele chega a separar a fala e a interpretação, como separa a interpretação do papel da transferência. A interpretação presentifica um mais-além da palavra: "A interpretação analítica [..] vai muito além da fala. A palavra é um objeto de elaboração para o analisando, mas sob os efeitos do que diz o analista - pois ele diz. Formular que a transferência tenha aí um papel, não é nada, não esclare nada. Tratar-se-ia de explicar como a interpretação funciona, e que ela não implica forçosamente uma enunciação"[37]. Para explicar a eficácia da interpretação, ele vem colocar a existência do efeito de sentido real. "O efeito de sentido a se exigir do discurso analítico não é imaginário. Também não é mais simbólico. É preciso que seja real. O que me ocupa nesse ano é pensar qual pode ser o Real de um efeito de sentido"[38]. Esta interpretação não é da ordem de uma tradução por acréscimo de um S2 em relação a um S1. É a interpretação que não visa a concatenação ou a produção de uma cadeia significante. Ela registra o novo objetivo de amarração do nó em torno do acontecimento de corpo e da inscrição que pode ser notada (a) em um uso renovado. "O que estamos colocando com o nó borromeano vai contra a imagem da concatenação. O discurso em questão não forma cadeia [...]. Portanto, surge a questão de saber se o efeito de sentido em seu real está no uso das palavras ou na sua jaculação[...]. Acreditávamos que era nas palavras. Ao passo que, se nos dermos ao trabalho de isolar a categoria do significante, podemos ver que a jaculação guarda um significado isolável"[39].
A escolha da jaculação em oposição à palavra nos faz questionar. É preciso notar que em francês o nome jaculação e o adjetivo jaculatório provém de discursos distintos, o humanista e o religioso. [40]
O novo uso que Lacan quer dar à jaculação não é nem humanista nem religioso. Ele vem de seu uso lacaniano próprio. Ele já qualificara o texto poético de “jaculação”, por Pindare[41]. Pode-se falar também de jaculações místicas, a propósito de Angélus Silesius [42]. Ou ainda faz-se do Poordjeli de Serge Leclaire “uma jaculação secreta, uma fórmula jubilatória, uma onomatopéia”[43], assimcomo faz-se do “Fort-Da” uma jaculação. Mas é no Seminário sobre o objeto da psicanálise que ele dá o sentido mais geral desta jaculação, retomando as primeiras frases do primeiro seminário sobre a ação do mestre zen: "[...] todos sabem que o exercício Zen tem alguma relação, mesmo que não saibamos bem o que isso quer dizer, com a realização subjetiva de um vazio. E não estamos forçando nada ao admitir que para quem quer que seja, o contemplador médio, verá essa figura, se dirá que há algo como uma espécie de momento culminante, que deve ter relação com o vazio mental que se trata de obter e que seria obtido nesse momento singular, brusquidão que sucede a espera que se realiza às vezes por um palavra, uma frase, uma jaculação, até mesmo uma grosseria, um gesto ofensivo [pied de nez] um chute na bunda. É bem certo que essas espécies de palhaçada não têm sentido a não ser em relação a uma longa preparação subjetiva[...]”[44]. Notemos aqui, de maneira crucial, a ligação da produção do vazio subjetivo e da jaculação.
Portanto, a jaculação inclui o valor do ardente, ou do entusiasmo, mas para designar um uso do significante tal como ele desperta no sentido de produzir o vazio da significação. O que é chamado de jaculação no Seminário 22, como designando um efeito de sentido real, torna-se no Seminário 24 o significante novo. "Quando ele pede um significante novo, se trata de fato de um significante que poderia ter outro uso, ... um significante que seria novo, e não simplesmente porque assim haveria um significante a mais, mas porque, no lugar de ser contaminado pelo sono, esse novo significante provocaria um despertar. "[45].
Esse despertar está ligado à produção de um efeito de sentido real como produção de um vazio subjetivo. Isso é consoante com o foco do último ensino sobre o furo e não sobre a cadeia.
Assim, em seu último ensino, Lacan desenha, literalmente, com o nó, uma modalidade de tratamento da disrupção do gozo pelo une-bévue. Para isso ele reformula os termos clássicos dos instrumentos da operação psicanalítica: o inconsciente, a transferência, a interpretação, para propor novamente: o falasser, o ato, a jaculação, sujeitos à lógica do Há-Um. A jaculação é central em todas as consequências que J.-A Miller nos fez ouvir. Esse conjunto de ocasiões define o enquadre teórico de uma prática da clínica das loucuras sob transferência e do tratamento da disrupção do gozo que se produz, particularmente em consonância com a desordem no Outro que supõe a abordagem desse campo. A leitura justa dos trabalhos do nosso Congresso supõe esse horizonte do último ensino, embora Lacan sempre ganhe mais ao ser lido "em bloco"[46]. Precisamos de um bloco orientado, pois, de outro modo, permaneceremos “ocidentados” [occidentés] na última curva de Lacan, tão propícia à prática contemporânea da psicanálise.

NOTAS

[*] Intervenção no 11º congresso da AMP em Barcelona “As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência”, Abril, 2018.
[2] Lacan J., « Lacan pour Vincennes ! » Ornicar ? 17-18,1979, Paris, Navarin, p. 278.
[3] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, L’Être et l’Un », Enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 23 mars
2011, inédit.
[4] Lacan J., « Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre», Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 11 janvier 1977, Ornicar ? n° 14, Paris, Navarin,
p.8.
[5] Lacan J., « Question préliminaire à tout traitement possible de la psychose », Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 583.
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] Ibid.
[9] Palomera V., « Transferencia y posición del analista en las psicosis. Entrevista », El psicoanalisis n°32, Barcelona, Escuela Lacaniana de Psicoanalisis, avril 2018, p. 76.
[10] B a s s o l s M . , « L a s p s i c o s i s o r d e n a d a s b a j o transferencia », El psicoanalisis n°32, Barcelona, Escuela Lacaniana de Psicoanalisis, avril 2018, p. 42.
[11] Laurent D., L’ordinaire de la jouissance, fondement de la nouvelle clinique du délire», La Cause du désir, n°98, Paris, Navarin, 2018, p.27.
[12] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre», Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 17 mai 1977, Ornicar ?n°17-18, Paris, Navarin, 1979, p. 20.
[13] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Le tout dernier Lacan » enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 14 mars 2007, inédit.
[14] Ibid.
[15] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait del’une bévue s’aile à mourre », Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 17.
[16] Lacan J., « La Direction de la cure et les principes de son pouvoir », Écrits, Paris, Seuil 1966, p. 590. Et la note [22] p. 645).
[17] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre», Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 18.
[18] Ibid.
[19] Ibid.
[20] Ibid.
[21] Horne-Reinoso V., « Point de folie à l’ère du parlêtre », La Cause du désir, n°98, Paris, Navarin, 2018, p. 68.
[22] Ibid.
[23] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Extimité » enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 27 novembre
1985, inédit.
[24] Lacan J., « Réponse au commentaire de Jean Hyppolite », (1954), Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 388.
[25] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre», Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 18.
[26] Laurent E., « L’étranger extime, I », Lacan quotidien, n°770, 22 mars 2018.
[27] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre», Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 18.
[28] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Le tout dernier Lacan », Enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 14 mars 2007, inédit.
[29] Ibid.
[30] Milner J-C, « Back and forth from Letter to Homophony», Problemi international, vol. 1,n°1, 2017, Society for Theoretical Psychoanalysis.
[31] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre », Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 18.
[32] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, L’Être et l’Un », Enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse, leçon du 11 mai 2011, inédit.
[33] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Le tout dernier Lacan », Enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 14 mars 2007, inédit
[34] Lacan J., « Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines », Yale University, Kanzer Seminar, 24 novembre 1975, Scilicet, 6/7, Paris, Seuil, 1976, p. 15.
[35] Lacan J., « Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse », Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 321.
[36] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, L’Être et l’Un », Enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse, leçon du 6 avril 2011, inédit.
[37] Lacan J., Séminaire XXII, « R.S.I », Séance du 11 février 1975. Texte établi par J.-A. Miller, Ornicar ? , n° 4, p.95-96.
[38] Ibid.
[39] Ibid., p. 96-97.
[40] Dictionnaire historique de la langue Française, Le Robert.
[41] Lacan J., Le Séminaire, livre VIII, Le transfert, texte établi par Jacques-Alain Miller, Paris, Seuil, 2001, leçon du 21 juin 1961, p. 433. – Lacan parle de la « jaculation célèbre de Pindare ».
[ 4 2 ] L a c a n J . , L e S é m i n a i r e X I I I , « L ’ o b j e t d e l a psychanalyse » (1965-1966), Séance du 1er décembre 1965, inédit
[43] Lacan J., Le Séminaire XII, « Problèmes cruciaux pour lapsychanalyse » (1964-1965), le 27 février 1965, inédit.
[ 4 4 ] L a c a n J . , L e S é m i n a i r e X I I I , « L ’ o b j e t d e l a psychanalyse », op.cit.
[45] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Le tout dernier Lacan », Enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 14 mars 2007, inédit.
[46] Como destaca o trabalho coletivo muito interessante coordenado por Leonardo Gorostiza, Lacan en Bloque, Grama, 2017.
Tradução: Arryson Zenith Jr.

Fonte original em francês: http://www.hebdo-blog.fr/disruption-de-jouissance-folies-transfert/

segunda-feira, 9 de abril de 2018

A interpretação borromeana

Texto de Jean Pierre Deffieux, de fundamental importância para que possamos compreender a queda do falocentrismo na atualidade.

Deslocar a interpretação do enquadre edipiano para o enquadre borromeano é mudar a própria noção da interpretação do sintoma em psicanálise.
No enquadre edipiano, a interpretação do sintoma tem por objeto o sentido, assim como toda formação do inconsciente. A interpretação é significante. Ela parte do significado para encontrar o significante inconsciente que está ligado a ele. É o modo da interpretação freudiana e, mesmo se ela se articula ao rochedo da castração, segundo a orientação de Lacan a partir do Outro barrado, ela não prescinde do sentido mesmo da castração.
Da mesma forma, quando Lacan articula a interpretação ao objeto a para tentar apanhar um pedaço do real, o objeto causa do desejo, a interpretação não se separa de uma intenção de sentido e de um querer dizer.
Apesar de todos os avanços teóricos de Lacan até os anos 70, parte do sintoma resiste e não conseguimos esvaziar totalmente o sintoma. Permanece o que Jacque-Alain Miller chamou de restos sintomáticos.
Lacan procurou, em seu último ensino, definir esse real do sintoma, não-interpretável no sentido tradicional da interpretação. Deu a ele um novo nome, o de sinthome, e lançou um novo ternário – último tópico lacaniano –  o ternário borromeano do imaginário, do simbólico e do real. Essa abordagem com a qual estamos familiarizados nesses últimos anos graças ao ensino de Jacques-Alain Miller, nos engaja em uma nova prática da psicanálise, em particular a da interpretação.
A resistência furiosa do sintoma, que nenhuma escuta ou palavra pode apagar, leva a inventar algo novo.
Esse real do sintoma, como abordá-lo a partir do simbólico? Começando por modificar nossa apreensão do simbólico, tomando a linguagem em um nível diferente daquele da linguagem articulada que visa o sentido e a comunicação, não aquele do Outro da linguagem, mas sim aquele do Um, isto quer dizer uma linguagem material, reduzida à sua materialidade significante, reduzida à letra: um significante, certamente, mas isolado de qualquer outro significante, isolado do sentido e repleto de gozo. É o que Lacan conseguiu definir em seu último ensino: a disjunção entre sentido e real.
É a partir daí que podemos colher o osso do sintoma, que Lacan denomina de sinthome.
É uma total outra visão da psicanálise e de sua experiência que se elabora aqui: uma vez eliminadas as armadilhas e os embustes significantes do sintoma, como abordar o real que está por trás dele?
É preciso para isso, começar de cada círculo do nó antes mesmo que eles sejam amarrados, isto é, o      que é impossível, partir do ser vivente antes mesmo que ele encontre a linguagem. A experiência analítica que vai abordar o sintoma, se orienta sobre o encontro inaugural e contingente da língua com o corpo vivente, do Um significante com o gozo, esse acontecimento de corpo primordial que vem interromper a quietude do gozo absoluto. Esse encontro primordial introduz uma repetição, uma reiteração[1] de gozo sem sentido que assinala a singularidade do gozo de cada parlêtre. O sinthome é a escritura desse encontro pela marca no corpo.
É essa reiteração de gozo e esse encontro primordial que interessam à experiência analítica no ultimíssimo ensino de Lacan.
“A psicanálise parte sempre da associação livre, das formações do inconsciente e da interpretação do sentido, mas não para se instalar aí, e sim para apontar o sem-sentido do Um, ao qual todo parlêtre está submetido fundamentalmente em sua repetição”. [2] Toda a questão está agora em saber como manejar a letra mais além do sentido, uma vez esvaziado o campo do sentido, o que Miller chama de “uma prática sem verdade”, enquanto tentativa de alcançar pela letra o encontro inicial e contingente do significante com o gozo.
Quando Miller propõe um novo tipo de interpretação como leitura do sem-sentido, ele faz referência a ‘Radiofonia’ onde Lacan sublinha que o Judeu é “aquele que sabe ler”[3], “que pela letra se distancia de sua fala, encontrando ali o intervalo, para aí se jogar com uma interpretação” [4].  O judeu “toma o livro ao pé da letra” para “extrair do texto um dizer outro”[5].
Um dizer não é um dito. O dito está do lado da verdade, da emergência do inconsciente, enquanto o dizer tem a ver com a lógica, ele não é uma demonstração, mas antes uma construção. O dizer é da ordem do ato, ele é sem-sentido.
Lacan dá, em Radiofonia, detalhes sobre o trabalho com a letra na exegese bíblica para “extrair do texto um dizer outro”: “A colusão significante, tomada em sua materialidade (espera, acordo, arranjo), a “combinação significante”, “torna obrigatório uma certa vizinhança, (não desejada), às “variantes gramaticais” que impõem “uma escolha desinencial”[6].

Em seu livro “A letra e o sentido na exegese judaica”[7], David Banon trata das modalidades particulares de leitura. Ele insiste na separação, o corte entre o texto e a palavra profética, a “palavra bruta”, palavra de Deus, palavra do “é assim!”, profecia não comentada; uma vez a palavra morta, permanece o texto onde a voz é depositada. Por trás do texto escrito, a exegese tenta encontrar a palavra viva: “Desfazer o silêncio do texto para captar o sussurro de sua oralidade”; buscar essa relação de diálogo inicial entre Deus e o homem.  Há então no trabalho de leitura bíblica judaica, o objetivo de um real, o real da voz de Deus e de sua palavra. David Banon dá nesse livro um certo número de detalhes sobre esse modo de leitura que faz “apelo à densidade da letra hebraica”. A Letra está aí para ser tomada no sentido mais radical, e não palavra por palavra. O alfabeto é interrogado em sua expressão mais simples, cada letra constituindo um modo de signos. Ler é um ato altamente subversivo que faz desatar o texto, o fragmenta, o espalha, faz “sobrecarregar, solicitar ao texto, perscrutar as letras”.
Dessa escrutinização da letra, David Banon dá algumas ocorrências: a exegese judaica é antes de tudo a disjunção entre o signo e o sentido, entre o significante e o significado, entre o signo e o referente. Ele assinala a ênfase dada à inversão, às combinações, aos acrônimos, às anamorfoses. “O texto nunca descansa”.
A psicanálise tem muito a aprender com esse modo de leitura.
Para acessar o real da experiência, que Miller localizou, em seu curso de 2011, do lado da existência, para diferenciar da essência e do ser, é preciso tomar a linguagem no nível da escrita – é isso o que aproximamos com a matemática – uma escrita que seja um manejo da letra, do traço (o significante é isolado da significação), uma escrita que leva à leitura e não à escuta.
Há no pensamento judeu uma dupla dimensão, duas versões de leitura, a versão poética que visa a busca infinita do sentido e da verdade, e a versão literal, sem sentido. Esses dois sistemas de leitura sempre coexistiram.
É para essa última apreensão da leitura que Lacan chama a atenção quando diz que o judeu é aquele que sabe ler: ele faz uma leitura que se orienta pela materialidade da escrita da letra.
Na experiência analítica, esse saber ler interpretativo deve visar o encontro inicial da linguagem com o corpo em todo ser humano, que é o coração do sinthome. Eis aí toda uma pesquisa apaixonante em perspectiva para o futuro da psicanálise.

Notas

[1] Miller, J.-A. “O ser e o Um”, curso de A Orientação Lacaniana, ocorrido no departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, 2011, inédito
[2] id.
[3] Lacan, J. Radiofonia em Outros Escritos, Zahar, 2008, p. 427
[4] Id, p.427
[5] Id, p.428
[6] Em linguística, a desinência é o elemento variável do radical de uma palavra.
[7] Banon D., Entrelacs. La lettre et le sens dans l'exégése juive, Paris, éd. du Cerf, coll.« La nuit surveillée », 2008

Tradução: Arryson Zenith Jr.


Texto original extraído de: Revista Quarto, nº 104, Bélgica, 2013, 96-97