Artigo publicado em "O Estado de São Paulo" sobre as dificuldades do exercício da profissão de Psicoterapeuta no mercado de trabalho:
No dia 23 de novembro, o New York Times publicou o artigo What brand is your
therapist?, no qual a escritora e terapeuta iniciante Lori Gottlieb conta das
dificuldades no exercício de sua profissão.
Após seis anos de estudos e treinamento, Lori acreditava que, ao se
estabelecer profissionalmente, logo estaria auferindo a satisfação esperada na
aplicação de seus conhecimentos e recebendo a merecida remuneração que
compensaria os investimentos em tempo e dinheiro despendidos nos estudos. Mas
suas expectativas esbarraram com uma acabrunhante falta de clientes, que logo
soube ser um problema que afligia não só a ela como a muitos colegas, até mesmo
os mais antigos e veteranos. Isso se devia em grande parte à política dos planos
de saúde, que deixaram de reembolsar os gastos com este tipo de tratamento ou a
restringir ao mínimo o número de sessões por eles cobertas, o que não ocorria
com o tratamento medicamentoso. Só em 2005, a indústria farmacêutica gastou US$
4,2 bilhões em publicidade direta ao consumidor e US$ 7,2 bilhões em promoções
para a classe médica - o dobro do que é gasto em pesquisa e desenvolvimento de
novos produtos.
Lori tomou conhecimento de que, para manter o trabalho, muitos colegas
recorriam ao auxílio de marqueteiros e publicitários, cuja estratégia maior
residia na criação de apelos (marcas ou brands) que dotavam o terapeuta de um
diferencial que o distinguia da massa de colegas, tornando-o mais visível para o
grande público.
Na opinião dos marqueteiros, as pessoas se interessariam menos pelo enfoque
tradicional da psicoterapia, desejariam soluções rápidas e fáceis para seus
problemas e estariam susceptíveis a propostas mais atraentes. Por exemplo, um
profissional não mais deveria se apresentar como "terapeuta familiar", o que
pareceria "genérico e superado", mas usar algo como "perito em ajudar famílias
modernas a navegar na mídia digital", alguém capaz de lidar com o cyberbullying
e o sexting (palavra criada a partir de sex e texting, que designa a mania
recente adotada por adolescente de postarem textos e fotos eróticas suas na
internet).
Mais ainda, para não ser considerado "frio e distante", o terapeuta
precisaria mostrar-se o mais aberto possível, falando de sua própria vida. Por
exemplo, deveria expor nas redes sociais, onde seus anúncios seriam veiculados,
se tem filhos, se é gay, se sofre de uma doença crônica, se provém de uma
família de pais divorciados, se perdeu recentemente um ente querido, se tem ou
teve problemas alimentares, etc. Tais revelações proporcionariam a aproximação
de pacientes com problemas semelhantes.
Lori fica escandalizada, pois todas essas orientações vão diretamente contra
tudo aquilo que aprendera na escola e nas supervisões clínicas. Tal abertura
cria uma atitude sedutora de falsa intimidade do terapeuta para com o cliente,
além de dificultar o estabelecimento dos movimentos transferenciais, essenciais
para o desenvolvimento do processo terapêutico.
O relato tragicômico de Lori não é muito diferente do que acontece no Brasil
e mostra algo que é próprio do começo da vida de qualquer profissional liberal.
Mas aponta para fatores antes inexistentes, como a mudança radical introduzida
no mercado pelos planos de saúde, que reduziram ao mínimo a prática privada da
medicina ou da psicologia, além de ressaltar que, no campo da psiquiatria, os
planos de saúde dão prioridade ao tratamento medicamentoso, muito menos custoso
do que o tratamento psicoterápico.
Mas o que no relato é chamativo é a aplicação direta de apelos comerciais
característicos de produtos de consumo a uma prática médica-psicológica, com o
objetivo de melhorar sua posição no mercado de trabalho.
O espírito da publicidade é negar as limitações, as dificuldades, as
impossibilidades que são inerentes à vida, vendendo a ideia de que tudo é
possível - desde que se consuma os produtos por ela anunciados, é claro. O
objeto de consumo é um fetiche que supostamente garante bem-estar imediato e
definitivo àquele que o possui, protegendo-o de toda e qualquer percepção de
infelicidade, incompletude e vazio. Tal ilusão não se sustenta por muito tempo,
gerando frustrações que são muitas vezes confundidas com "depressões" a serem
medicadas.
Assim, tratar a psicoterapia como um item de consumo não só fere a ética, que
estabelece parâmetros estritos sobre como o profissional deve divulgar seus
serviços, como é desastroso, pois reforça distorções da realidade que a
psicoterapia tem por ofício analisar.
Seria ótimo se houvesse soluções fáceis e imediatas para os problemas que nos
acometem. Mas as coisas não são simples. É por esse motivo que, ao invés de
oferecer soluções mágicas ao paciente, o psicoterapeuta se dispõe a ajudá-lo a
entender a complexidade de seu próprio psiquismo, sua dimensão inconsciente que
abriga fantasias infantis ainda vigentes na atualidade, cujos padrões
anacrônicos de funcionamento continuam a influenciar seu comportamento, seus
relacionamentos pessoais e decisões sem que ele mesmo disso se aperceba. A
terapia pode dar-lhe condições para lidar melhor com os impedimentos e perdas
inevitáveis que a vida impõe a todos, bem como libertá-lo de inibições e medos
imaginários que dificultam o exercício de suas potencialidades. Tudo isso
demanda tempo e perseverança no trabalho conjunto realizado pela dupla terapeuta
e paciente, mas o alívio buscado por este ao procurar a terapia não precisa
esperar pelo término do processo para se fazer sentir. O poder expressar suas
dificuldades, a paulatina compreensão de seus conflitos internos proporciona um
progressivo domínio sobre o sofrimento e a angústia.
Se a psicoterapia e os hábitos de consumo se constituem como mundos
inconciliáveis, há uma incômoda proximidade entre as leis do consumo e o
tratamento medicamentoso. Produto da poderosa indústria farmacêutica, ele
disputa o mercado usando agressivamente os recursos da publicidade, com o
objetivo de induzir um consumo cada vez maior, como a pequena mostra de números
citada acima evidencia. Mais ainda, da forma como muitas vezes é apresentada, a
medicação em si, o próprio comprimido, aproxima-se perigosamente do objeto
fetiche, do talismã cuja posse (ingestão) garante a resolução de todos os
problemas.
Essas observações não implicam uma negação da grande importância da medicação
psicotrópica nos distúrbios mentais. Antes se opõem aos excessos no uso deste
recurso, que muitas vezes levam a uma equivocada depreciação da psicoterapia,
ignorando que ela é um inestimável e insubstituível instrumento para o
autoconhecimento e bálsamo para o sofrimento do paciente.
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