segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Sobre a transferência

Freud (1912), no texto "A dinâmica da transferência", pontua que a transferência ocorre não só no tratamento psicanalítico, mas também em instituições, e por isso é importante considerá-la no tratamento dos pacientes, na medida em que as características da transferência não devem ser atribuídas a psicanálise, mas a própria neurose. O paciente transfere para a figura do médico/analista/profissionais de saúde mental conteúdos inconscientes que dizer de sua relação com o pai, com a mãe. Há tanto a transferência “positiva”, de sentimentos afetuosos, e a “negativa”, de sentimentos hostis, que trabalham como resistência ao progresso da terapia. 
Nesse texto um ponto nos chama a atenção, Freud destaca a transferência como fundamental no tratamento psicanalítico de pacientes neurótico, e destaca que “Onde a capacidade de transferência tornou-se essencialmente limitada a uma transferência negativa, como é o caso dos paranóicos, deixa de haver qualquer possibilidade de influência ou cura” (Freud, 1912, p.118).
Então os psicóticos não podem ser tratados pela psicanálise? 
Bem, podemos dizer que Freud não pôde avançar muito em relação ao tratamento de psicóticos, ainda que explorou a descrição da psicose e seus mecanismo em textos muito importantes em seu ensino, ao marcar a formação da neurose a partir do recalque, e da psicose a partir da foraclusão (termo utilizado por Lacan em sua releitura freudiana). Contudo, é Lacan quem inaugura o campo do tratamento psicanalítico das psicoses a partir de seu estudo inaugural sobre a paranóia no caso de Aimèe. E a partir daí os psicanalistas tomam como referência para o tratamento de psicóticos o ensinamento de Lacan de não recuar diante da clínica da psicose.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Considerações sobre “o mito individual do neurótico”

Em “o mito individual do neurótico”, Lacan (1953, p.14) ressalta a importância de se introduzir no mito freudiano algumas modificações estruturais necessárias para a compreensão das vivências relatadas pelos sujeitos neuróticos em análise. Nesse texto, ele assinala que o complexo de Édipo se baseia no conflito fundamental amor-ódio em relação ao pai, mas destaca que a experiência se estende entre a imagem degradada do pai e a relação simbólica com o mesmo.
Para elucidar a estrutura da neurose obsessiva, marcada pela tensão agressiva e fixação pulsional, Lacan se utiliza de um caso clínico analisado por Freud, o Homem dos Ratos. Nesse caso, podemos observar tanto a impossibilidade do simbólico em recobrir a pulsão de morte, já que a inscrição do significante Nome-do-Pai na estrutura não encobre a agressividade, como a presença de um pai degradado, humilhado.
O autor analisa um esquema fantasmático que se repete sintomaticamente na história de vida do paciente e o nomeia como mito individual do neurótico. Os sujeitos neuróticos retomam, em suas relações, a estrutura básica que advém da constelação familiar, ou seja, das “relações familiares fundamentais que estruturam a união de seus pais” (Lacan, 1953, p.19). 
Lacan (1953, p.21-24) apresenta como elementos do mito familiar do Homem dos Ratos certa desvalorização do pai, que faz um casamento vantajoso com a mãe, e uma dívida que tem com um amigo que ao lhe emprestar uma soma de dinheiro passa a ser seu salvador. O que se repete sintomaticamente, então, é o conflito mulher rica / mulher pobre, que marca o desencadeamento de sua neurose quando o pai o pressiona a se casar com uma mulher rica, e a questão da dívida do pai com o amigo, retomada quando o sujeito se vê na situação de ter que reembolsar uma soma em dinheiro pelo envio de um par de óculos que havia perdido, que ele toma para si como um dever neurótico.
Lacan utiliza esse caso como um exemplo para apontar uma mudança na própria estrutura do complexo de Édipo, diferente do esquema triangular criança-mãe-pai, onde o pai tem a função de interditar o desejo incestuoso pela mãe. Essa crítica ao esquema tradicional do Édipo se faz a partir da introdução de um quarto elemento, de modo que um sistema quaternário passa a substituir a tríade clássica. Para que se possa compreender do que se trata na estrutura quaternária, Lacan destaca a função simbólica do pai, em que a função exercida pelo Nome-do-Pai de promover o recobrimento do real pelo simbólico é sempre incompleta “o pai é sempre, por algum lado, um pai discordante com relação à sua função, um pai carente, um pai humilhado” (Lacan, 1953, p.40).
 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O pré-estruturalismo e a primeira teoria do desenvolvimento de Jacques Lacan


Como apontado por Miller (2005) no texto "Leitura crítica dos “Complexos familiares”, de Jacques Lacan", encontramos no texto de Lacan (1938) “Os complexos familiares na formação do indivíduo” uma primeira teoria do desenvolvimento, em que ele apresenta os três tempos na forma de complexos e define a formação psíquica dos indivíduos a partir dos complexos familiares. Apesar de distinguir nesse texto o eu (moi) do sujeito, Lacan ainda não se vale das ferramentas propostas pelo estruturalismo de Jakobson e Lévi-Strauss. Desse modo, Miller (2005, p.9) defende que encontramos nesse texto um Lacan pré-estruturalista, na medida em que lhe falta a precisão do simbólico, da estrutura e da noção de significante, que aparecem em seu texto sob a forma da cultura, do complexo e da imago, respectivamente.

Segundo Lacan (1938), as instituições familiares têm papel primordial na transmissão da cultura, das leis e na formação psíquica dos sujeitos. Ele define a família a partir dos complexos, que corresponde a um agregado de percepções, sentimentos e sensações; sendo que o complexo é dominado por fatores culturais e reproduz uma certa realidade do ambiente: “os complexos demonstraram desempenhar um papel de “organizadores” no desenvolvimento psíquico” (Lacan, 1938, p.35).

Lacan apresenta três complexos: do desmame, da intrusão, e o complexo de Édipo.

1. O complexo do desmame apesar de ser o mais primitivo do desenvolvimento psíquico é regulado culturalmente, ou seja, não é uma regulação natural. Ele deixa uma marca na relação biológica que interrompe, a amamentação, e pode, ou não, causar um trauma psíquico, como nos casos das anorexias nervosas, toxicomanias pela boca e neuroses gástricas, em que os sujeitos repetem indefinidamente o esforço de se separar da mãe. O complexo é definido em oposição ao instinto, pois este tem um suporte orgânico, enquanto que o complexo só tem uma relação orgânica quando “supre uma insuficiência vital pela regulação de uma função social” (Lacan, 1938, p.40). É o que ocorre no caso do complexo do desmame, onde a sublimação da imago materna se torna particularmente difícil. Miller (2005) aponta que podemos encontrar nesse texto, a partir da diferenciação que Lacan faz entre complexo e instinto, o conceito de apoio. O complexo tem um fundamento biológico, mas ele se apóia no instinto. A noção de apoio é a base para a compreensão do conceito de pulsão, trabalhado posteriormente no ensino de Lacan como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, situado na fronteira entre o mental e o somático. A pulsão se apóia no instinto para dele se desviar, na medida em que se desvia de seu objetivo natural, que seria o da autoconservação.

2. O complexo da intrusão consiste no reconhecimento do sujeito entre irmãos. Ou seja, se segue ao declínio do desmame o estádio do espelho, em que o sujeito passa a fazer uma diferenciação entre o eu e o outro, seu semelhante. Utiliza-se o exemplo do ciúme para ilustrar a intrusão, no caso do ciúme do irmão mais velho em relação ao irmão caçula, “seja como for, é através do semelhante que o objeto, assim como o eu, se realiza: quanto mais pode assimilar de seu parceiro, mais o sujeito reforça sua personalidade e sua objetividade” (Lacan, 1938, p.51). Miller (2005, p.13) assinala que se trata, na relação entre o eu e o semelhante, descritas no complexo de intrusão, da relação imaginária, que tem na competição com o rival e no acordo com o igual o próprio motor da sociedade humana.

3. O complexo de Édipo, Lacan apresenta uma revisão deste a fim de relacioná-lo à família patriarcal e a neurose contemporânea. Em relação ao desejo edipiano do menino em relação à mãe, o pai opera enquanto agente da interdição sexual. A conclusão da crise edipiana ocorre com a internalização da lei através do supereu e a sublimação da imagem parental, a identificação ao pai, através da formação do ideal do eu: “a imensa coleta de dados que o complexo de Édipo tem permitido objetivar (...) pode esclarecer a estrutura psicológica da família” (Lacan, 1938, p.55). Ou seja, a concentração na imago paterna da função de repressão e de sublimação caracteriza a família patriarcal.