terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O conceito de Supereu em Freud

Freud empreende uma análise do supereu desde o início de suas investigações sobre o aparelho psíquico, na medida em que procurava compreender a clínica da neurose e o processo do recalque que estava na base da formação sintomática. Podemos encontrar as primeiras referências ao supereu no texto “A interpretação dos sonhos” (1900-1901). Freud apresenta ali o esquema do primeiro aparelho psíquico composto pelos sistemas consciente, pré-consciente e inconsciente. Segundo ele, a entrada dos estímulos acontece pela via da percepção, e o de resposta, ou descarga, pela via motora. O pré-consciente situa-se na extremidade motora e o inconsciente se localiza entre este e os traços mnêmicos. Ao passo que a consciência representa uma dupla superfície sensorial, uma voltada para a percepção e a outra para o pensamento (ibidem, p. 603).
 
 O inconsciente não é descrito como uma mera oposição à vigília ou ao consciente, mas como um sistema primitivo e amplo que engloba o consciente. O inconsciente se separa do consciente por uma tela – o sistema pré-consciente – e alcança a consciência somente após deformação da censura. A censura é definida como uma “instância crítica” que, apesar de se localizar entre os sistemas inconsciente e consciente, permanece mais ao lado deste último, na extremidade motora do aparelho, onde também se encontra o pré-consciente. Trata-se de uma instância crítica porque exerce a função de censor do eu ou da consciência (ibidem, p. 537).

Com o objetivo de demonstrar a existência do supereu, Freud (ibidem, p. 541-542) apresenta a análise de um sonho no qual havia algo mais além da mera realização de desejo: o sonho de um pai que velava o filho morto. O homem se encontrava num quarto ao lado do filho morto e deixara um velho vigiando o corpo do menino. Em algum momento o pai adormece e sonha que o filho está de pé ao seu lado e lhe diz “Pai, não vês que estou queimando?”. Nesse momento o homem desperta e vê que realmente o corpo do filho estava queimando por conta de uma vela que caíra sobre ele enquanto o velho que o vigiava dormira. Esse sonho corrobora a tese de que o sonho é uma realização de desejo – na medida em que no sonho o filho se encontrava vivo –, porém aponta um novo elemento: o sentimento de culpa (ibidem, p. 587). Por isso podemos localizar na análise desse sonho os antecedentes do conceito do supereu, tal como Freud (ibidem) assinala em uma nota de rodapé acrescentada ao texto em 1930: “este seria o local apropriado para uma referência ao ‘superego’, uma das descobertas posteriores da psicanálise – Uma classe de sonhos que constitui uma exceção à ‘teoria do desejo’”.

Lacan (1964, p. 60) destaca que, apesar do sonho analisado por Freud confirmar a teoria do desejo –, pois o filho está vivo e o pai pode continuar dormindo –, este também aponta para a existência de algo além da fantasia e para o “pecado do pai”, que é não estar à altura de sua função de velar o filho morto:

O filho morto, pegando o pai pelo braço, visão atroz, designa um mais-além que se faz ouvir no sonho. O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto. É no sonho somente que se pode dar a esse encontro verdadeiramente único. Só um rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável.


Por outro lado vale destacar que a definição do supereu – enquanto instância crítica que faz emergir o sentimento de culpa – permaneceu durante algum tempo pouco desenvolvida na obra freudiana. Somente no artigo “Sobre o narcisismo: uma introdução” Freud (1914) nomeia essa instância crítica como responsável pela observação e auto-censura do ideal do eu. Até então Freud considerava o supereu como uma instância repressora e reguladora das satisfações pulsionais, regulação esta operada pelos princípios do prazer e da realidade.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Considerações sobre a Letra e o Significante

Segundo Lacan, em O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73), a Letra é o suporte material do significante. O conceito de Letra  apresentado por Lacan no Seminário 20 não é o mesmo daquele descrito no texto A instância da Letra, em que ele não distinguia o conceito de letra do conceito de significante.

A partir do segundo ensino de Lacan, a letra passa a caracterizar o significante em sua materialidade, e possibilita, deste modo, a escrita, que vêm em suplência a não relação sexual, ou seja, a escrita - dos discursos e das fórmulas da sexuação - são tentativas de dar conta daquilo que não se inscreve, de algo que é da ordem do impossível, o real.

Em Lituraterra, texto de 1971 presente em Outros Escritos, Lacan marca a diferença entre letra e significante ao afirmar que a letra comporta a dimensão do lixo. Para tal utiliza o equívoco com que James Joyce deslizou de a letter para a litter. Lacan utiliza o termo lixo como equivalente ao resto. A letra é, portanto, o que contorna o furo, ou melhor, contorna o resto, que é esse algo do real que não se inscreve simbolicamente “A borda do furo no saber, não é isso que ela (letra) desenha? E como é que a psicanálise, se justamente o que a letra diz por sua boca ‘ao pé da letra’ não lhe conveio desconhecer, como poderia a psicanálise negar que ele existe, esse furo, posto que, para preenchê-lo, ela (letra) recorre a invocar nele o gozo?” (1071, p.18).

Por fim, Lacan se vale do conceito de Letra para formalizar o Discurso, em O seminário, livro 17: avesso da Psicanálise. A concepção de discurso surge, então, como um corte, um discurso sem palavras. O discurso é sem palavras porque são as letras, suporte material do significante, que operam nos discursos, ou seja, a escrita não é do mesmo registro que o significante, do mesmo campo da linguagem, ou da significação.

E a partir de uma estrutura discursiva Lacan localiza ali a relação do sujeito com o saber, com o objeto e com os significantes. Assinala também a existência de quatro discursos: o discurso do mestre, da histérica, da universidade e do analista, que são fundamentais para entendermos qual o lugar do sujeito nesses diferentes discursos e como a partir de uma inversão na relação do sujeito com o objeto surge um quinto discurso, o discurso do capitalista que passa a reger as novas formações sintomáticas.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

A função da escrita na psicose


A partir de um caso de psicose paranóica apresentado por Freud, o caso Schreber, pretendo destacar que a escrita pode operar como um ponto de estabilização, ou mesmo como diria Lacan um ponto de amarração dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário.

Nossa investigação sobre a função da escrita no caso Schreber coloca uma pergunta inicial acerca da função da escrita na psicose. Verificamos na clínica da psicose que estes escrevem como os neuróticos falam. Ou seja, enquanto na neurose o inconsciente, recalcado, emerge a partir dos tropeços na fala (lapso, ato falho), na psicose o inconsciente fica exposto, a céu aberto.

Lacan enfoca, especificamente, a relação do sujeito com a linguagem para estudar a psicose ao afirmar que “em torno dos fenômenos de linguagem mais ou menos alucinados, parasitários, estranhos, intuitivos, persecutórios de que se trata no caso Schreber, que vamos esclarecer uma dimensão nova na fenomenologia das psicoses” (Lacan, 1955-56, p. 120). Assim, ele centra sua investigação sobre a psicose no remetimento dos fenômenos (delirantes e alucinatórios) a uma estrutura de linguagem, que o conduz a afirmação que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.

Desse modo, ele apresenta, em O seminário, livro 3: as psicoses, uma mudança do paradigma fenomenológico para o paradigma estrutural. Se em sua primeira tese sobre a paranóia intitulada Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade ele apresentou o estudo do caso Aimée influenciado por Jaspers e pela fenomenologia, a tese sobre a psicose que desenvolverá posteriormente, em seu primeiro ensino, foi influenciada por Clérambault e pelo estruturalismo. Ele retoma os fenômenos de automatismo mental descritos por Clérambault para aplicá-los à análise de Daniel Paul Schreber – cujas memórias serviram para que Freud (1911) analisasse a psicose paranóica. Situa os fenômenos manifestos na psicose de uma nova forma, não mais puramente descritiva, mas explicativa, além de assinalar a presença de uma quebra da cadeia discursiva na psicose.

O argumento de Lacan, neste momento de seu ensino, é que apesar dos fenômenos serem compreendidos na experiência analítica através do simbólico, do imaginário e do real, é pela via do simbólico que se realiza o diagnóstico diferencial neurose-psicose (Lacan, 1955-56, p. 18-20). Dessa forma, a investigação psicanalítica sobre o diagnóstico baseia-se na estrutura da linguagem, na relação do sujeito com o significante.

A psicose é caracterizada pela não-inscrição de um significante fundamental – o Nome-do-Pai. A foraclusão desse significante impede ao sujeito a entrada na ordem simbólica, e tem como efeito a produção de fenômenos elementares, como a alucinação, que consiste no retorno no real daquilo que foi foracluído na ordem simbólica (ibidem, p. 21).

Apesar do psicótico transitar no nível simbólico, ele não reconhece o significante Nome-do-Pai, foracluído da estrutura, por isso a função da mediação simbólica é substituída pela ploriferação imaginária. Assim, enquanto há psicóticos que vivem compensados pela identificação imaginária, outros remanejam o significante e criam uma metáfora, como se constata na construção delirante de Schreber de uma língua fundamental ou de A mulher de Deus, fazendo existir A mulher que não existe.

Lacan (1957-58, p. 584) localiza o desencadeamento da psicose no encontro com a falta do significante Nome-do-Pai, como é o caso de Schreber em que o encontro com Um pai – quando assume um lugar de presidência no tribunal – promove o surgimento dos fenômenos elementares. Outro efeito da perda da realidade na psicose – termo que Lacan (ibidem, p. 57) toma emprestado de Freud – é o não estabelecimento ou afrouxamento da relação entre o significado e o significante.

No entanto, a relação particular de cada psicótico com a linguagem cria a possibilidade de construção de uma nova realidade através do recurso ao delírio, que pode levar a uma estabilização. Tal foi o caso de Schreber que através da construção da metáfora delirante “sou mulher de Deus” (ibidem, p. 76) pode substituir a metáfora inoperante do Nome-do-Pai. Em outras palavras, ele pôde dar uma resposta, ou um tratamento, aos fenômenos elementares que o invadiam – como os raios, os nervos divinos, e vozes que falavam com ele. Em outras palavras, a construção da metáfora delirante representou uma suplência ao Nome-do-Pai foracluído.

O que nos leva a entender a Obra escrita de Schreber – Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken [Memórias de um doente dos Nervos] – como uma forma de suplência, de sutura no ponto onde o Nome-do-Pai foi foracluído no simbólico. De modo que a escrita teve a função de estabilização e de enlaçamento social, o (re) ligando ao campo do Outro.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Sobre a Repetição

Anotações sobre a Noite Preparatória da AMP, na EBP/RJ dia 31/10/2011.

Serge Cottet
Psicanalista e Professor-Doutor do Département de Psychanalyse de Paris VIII

O conceito de repetição implica a ordem simbólica, o inconsciente, a cadeia significante.
Na concepção freudiana era descrita como a repetição do mesmo. Assim, no início de seus estudos preponderava a relação entre a repetição e o simbólico.
O analizante repete no lugar de recordar, segundo Freud assinala no texto "Recordar, repetir e elaborar" (1914). O sujeito repete porque recalca. Repete porque na análise se dá um tratamento aos sintomas.
Lacan inicialmente subescreveu essa visão imaginária da repetição, por exemplo através da análise do caso Dora, em que destacou a "matriz imaginária", a concepção imaginária da repetição, os automatismos de repetição.
A vida amorosa é o terreno privilegiado dessa repetição. O exemplo da "Gradiva de Jansen" ilustra como o sujeito não sabe qual é o objeto perdido que o parceiro vem substituir.
O motor da repetição é, dessa forma, o encontro, ou poderíamos dizer, o reencontro com o objeto perdido.
No seminário "De um Outro ao outro", Lacan diz que não se pode mais sustentar a repetição a partir do binário: cópia e similar ("matriz imaginária"). Assim, formula que há uma anulação do traumático (disso que retorna sempre no mesmo lugar, o real) pelo significante, como podemos observar na bricadeira da criança descrita por Freud nomeada como Fort-Da.
Desse modo, o que repete é o desegradável, algo além do princípio do prazer, e não a reparação do objeto perdido. O traumático insiste e é impossível de ser simbolizado.
Diante desse real, do traumático que insiste, e que observamos através dos novos sintomas no contemporâneo isso aumentado pela relação entre o sujeito e sua certeza de gozo, como no caso da toxicomania, surge a pergunta sobre a direção de tratamento dessas sintomatologia no contemporâneo. A resposta é de uma direção que vá além da interpretação freudiana e aponta para algo que é preciso "avisar" do perigo do real para os sujeitos

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A verdade é irmã do gozo.

"A vida e a verdade formam um casal inédito, que não tem o hábito de passear de mãos dadas pelos jardins do Campo Freudiano... E é precisamente porque a verdade fala que não sabemos o que ela quer... A vida, ao contrário, não fala. É talvez por esta razão que sabemos o que ela quer. Ela quer se transmitir, durar, jamais acabar. Os corpos vivos morrem. A vida, ela não morre". Miller, J-A. Opção Lacaniana, nº41.

Sobre o conceito de verdade, Lacan o desenvolve em seu ensino a partir da teoria dos discursos. Ele introduz o conceito de estrutura pela via do discurso. Desde seu encontro com a linguagem o sujeito já é marcado por uma perda de gozo. No intervalo entre os significantes - S1 e S2 - emerge o sujeito como tal, o sujeito barrado, o sujeito do inconsciente, marcado tanto por uma perda como pela possibilidade, acesso, a uma parcela de gozo.
A verdade aparece aí como irmã do gozo, tal como assinala Lacan em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. A verdade revela algo do inconsciente e também uma satisfação, gozo, própria das formações sintomáticas. Assim, trazer a verdade a tona, através da experiência analítica, é abrir para a possibilidade de tratamento do gozo, sempre considerando a resistência, a transferência a a repetição características do funcionamento psíquico.

domingo, 23 de outubro de 2011

O afeto e a angústia

"Lacan sempre se esforçou para sustentar que há uma inadequação radical e insuperável do ser falante, de seu corpo, com o mundo. Não há adequação original do afeto com o meio, nenhuma harmonia do ser no mundo, se este ser fala".

Leonardo Gorostiza. Opção Lacaniana, nº 49


Com essa afirmação o autor nos esclarece que o ser falante, ou seja, aquele que entra na linguagem simplesmente pelo fato de existir e por estar no discurso, ele está marcado pela inadequação, pelo desconforto de seu corpo com o mundo, do afeto com o meio e do impossível que marca a comunicação entre os sujeitos. Os ruídos são inerentes à comunicação, pois sabemos que o inconsciente se manifesta em nossa fala através dos lapsos e atos falhos. Assim muitas vezes dizemos o que não queremos e escutamos o que não foi dito.

Lacan afirma que todos são marcados pela linguagem desde o momento do nascimento, e os neuróticos são marcados pelo discurso. Este funda o sujeito barrado, o sujeito do incosciente. Se os significantes são recalcados o mesmo não ocorre com os afetos. Estes permanecem livres e por isso se deslocam, de modo que nos vemos surpreendidos por algo que sentimos que não conseguimos explicar conscientemente, ou não conseguimos dar sentido. Assim, o afeto deve ser abordado na relação do sujeito com o Outro.

Na experiência psicanalítica o afeto central é a angústia, o afeto que não engana, signo do real. E esse afeto vem à tona quando o sujeito se encontra com o objeto a.
"É somente através dela - da angústia  e sua certeza - que podemos seguir mantendo aberta a pergunta sobre o 'porquê' ligado à existência, a pergunta que o caminho da modernidade da ciência e da tecnologia quer nos fazer esquecer ao propor uma redução da angústia a um mero 'estado de corpo' desconhecendo sua dimensão existencial' ".

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A toxicomania e a inexistência do Outro

Constata-se na atualidade um enfraquecimento do Pai que autenticava o sujeito do inconsciente e operava como um regulador de gozo. O declínio da imago paterna foi antecipado por Lacan (1938, p.66) em “Os complexos familiares na formação do indivíduo” e retomado em “Radiofonia” sob a expressão “ascensão ao zênite social do objeto pequeno a (Lacan, 1970/2003: 411). Do mesmo modo, Jacques-Alain Miller (2005) no texto “Uma fantasia” aponta o lugar dominante do objeto a, que se impõe ao sujeito como imperativo de gozo e o convida a ultrapassar as inibições, motivo pelo qual é a bússola da civilização atual em que o Outro não existe.

Dessa maneira, verifica-se o aumento do que vem sendo denominado de novos sintomas, isto é, uma fenomenologia que não se apresenta tal como o sintoma psicanalítico que se espera encontrar no início do tratamento. Na clínica das toxicomanias observa-se que a nomeação comum na fala dos drogadictos – “eu sou toxicômano” – é propiciada pelo discurso da ciência. Ao se identificar ao objeto-droga tenta se livrar da relação sujeito-Outro em prol de um gozo auto-erótico.

Segundo Naparstek (2005, p.09-17), verifica-se na clínica atual das toxicomanias um aumento do diagnóstico de psicose. A tese lacaniana acerca das drogas como o que permite romper com o gozo fálico é valida somente para a neurose. Desse modo, faz-se necessário re-situar a relação entre a toxicomania e a psicose, em que a droga pode operar como uma suplência possibilitando uma estabilização, a partir das Conversações Clínicas de Antibes e de Arcachon, que colocam uma alternativa a classificação de psicose pautada nos fenômenos clínicos em função da foraclusão do Nome-do-Pai (P0) e da falência do significante fálico (F0).

Para realizar um diagnóstico diferencial de psicose e direcionar o manejo transferencial, o analista precisa promover a escuta do que leva cada sujeito a recorrer à droga e quais são “as marcas singulares da história de um sujeito que serão imprescindíveis para chegar a um diagnóstico sob transferência” (Zaffore, 2005, p.39).

Orientado pela clínica borromeana, o analista pode interpretar os relatos freqüentes de usuários de drogas acerca do vazio existencial, da sensação de irrealidade, da falta de afetividade, como índice de uma estrutura psicótica (Recalcati, 2003, p.14). Apesar de estarem ausentes os efeitos devastadores do gozo – como alucinação, delírios de influência e de transformação do corpo –, a categoria “psicose ordinária” – cunhada por Miller (2003) em La psicosis ordinaria: la convención de Antibes – permite destacar outros elementos como índices para um diagnóstico de psicose:

a) o “novo desencadeamento”, caracterizado pelos desenlaces do Outro, perdas identificatórias e vivências impossíveis de serem significantizadas (ibidem, p. 74).

b) a “nova transferência”, definida a partir da hipótese de que alíngua – fundadora, única e última – motiva a nova transferência ao se colocar “como um novo tear para tecer o laço social” (ibidem, p. 132).

c) a “nova conversão”, que consiste em fenômenos ligados ao corpo determinados pela ausência da significação fálica e demonstram como o sujeito se arranja com seu desejo para gozar. A toxicomania, por exemplo, evidencia que ao tomar o corpo a partir do mais-de-gozar se resolve a questão da satisfação do desejo (ibidem, p. 106).

O recurso à droga como uma tentativa de estabilização na psicose é falha desde o início, pois, diferente do delírio de Schreber e da escrita de Joyce, revela um tratamento do real pela via do objeto produzido pela ciência, que coloca o sujeito no limite da passagem ao ato.

A direção de tratamento que a psicanálise propõe para a clínica das toxicomanias consiste na pergunta acerca da função da droga para cada um e na oferta de um espaço onde a partir da fala pode-se descolar do significante social “toxicômano”. Um ponto fundamental é a questão do manejo transferencial, que cria a possibilidade de re-construção da história, da envoltura narcísica e dos laços sociais.

domingo, 9 de outubro de 2011

A fundação da Escola Freudiana de Paris por Jacques Lacan

Ao fundar sua Escola, Lacan partiu do princípio de que os analistas estão permanentemente em formação, na medida em que há um real que funciona como causa de desejo para cada um dos seus membros, mas constitui ao mesmo tempo uma dificuldade institucional.
Levando em conta o princípio de que a prática e a formação de um analista da Escola está direcionada a um ponto de impossível, a política da instituição estará sempre articulada a uma clínica. Assim sendo as análises, seus possíveis finais, os passes e pós passes, além de funcionarem como produção de saber, funcionam também como tratamento do mal estar da Escola.
Fernando Coutinho



Em 21 de junho de 1964, reafirmando, ao mesmo tempo, a validade da experiência psicanalítica e a necessidade de estabelecer-lhe o princípio freudiano na teoria e na prática, Jacques Lacan introduzia, simultaneamente, a noção de uma forma associativa até então inédita: no lugar da Sociedade que se tornou tradicional, baseada sobre o reconhecimento mútuo dos didatas, ele propôs a Escola, cujos membros encontrariam no reconhecimento de um não saber irredutível – S(A) – que é o próprio inconsciente, o ponto de partida para prosseguir um trabalho de elaboração orientada pelo desejo de uma invenção de saber e de sua transmissão integral, o que Lacan devia chamar, mais tarde, de matema. Sobre esse fundamento abissal, cobrindo-o com seu nome próprio, ele estabelecia sua Escola e convocava à reconquista do campo freudiano.



"O apelo de Lacan ressoou para além da dissolução Escola que ele havia fundado – ressoou para além de sua morte, ocorrida em 9 de setembro de 1981 – ressoou longe de Paris, onde ele viveu e trabalhou". Assim se expressava, em 1º de fevereiro de 1992, o texto do Pacto de Paris, redigido no momento em que a École de la Cause Freudienne, a Escuela del Campo Freudiano de Caracas, a École Européenne de Psychanalyse du Champ Freudien e a Escuela de la Orientación Lacaniana del Campo Freudiano decidiram convergir rumo à Associação Mundial de Psicanálise que acaba de ser fundada por Jacques-Alain Miller.



Retirado do site da EBP http://www.ebp.org.br/

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O dispositivo do Passe

"O passe é um esforço para fazer passar o saber transferencial obtido graças aos instantes de abertura do inconsciente, para o lado da Escola." Pierre-Gilles Guéguen

GRACIELA BRODSKY, fala sobre sua experiência com o dispositivo do passe e sobre a exposição oral dos AEs (Analistas da Escola) durante a transmissão, o testemunho do passe, que ocorre quando se chega ao fim de análise e para além da travessia da fantasia se constrói um saber-fazer com os restos sinthomáticos:

"Alguns querem mesmo a carne, o que faz me lembrar de um conto de Alphonse Allais do qual Lacan gostava muito: uma mulher faz strip-tease, o público quer que ela tire a roupa e ela vai fazendo isso até ficar nua, mas, quando está nua, arrancam-lhe a pele. Esse público queria ver cada vez mais, o que nunca se alcança"
(Revista Correio, nº67).

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Formação em Psicanálise - O que é um cartel?

Nas escolas de formação em psicanálise que seguem o ensino de Lacan existem os Cartéis, que visam manter de forma permanente o trabalho de investigação da teoria e da clínica psicanalítica.

Retirado do site da EBP (Escola Brasileira de Psicanálise):

O que é um Cartel?*
O cartel é uma invenção de Lacan que visa manter na Escola um trabalho permanente de investigação em relação à psicanálise. Esse dispositivo adota como princípio a elaboração apoiada em um pequeno grupo, cria, porém, por sua estrutura e funcionamento, mecanismos que possam conter os efeitos grupais.
Em 1964, Lacan apresenta pela primeira vez o cartel [1]. Entretanto, alguns anos mais tarde, ele fornece com maior precisão os termos de sua formalização:

“Primeiro – quatro se elegem para prosseguir um trabalho que deve ter seu produto.
Esclareço: produto próprio de cada um e não coletivo.
Segundo – a conjunção dos quatro se efetua em torno do Mais-Um que, embora possa ser qualquer um, deve ser alguém. A seu cargo estará o velar pelos efeitos do empreendimento e provocar a elaboração.
Terceiro – para prevenir o efeito de cola, deve acontecer a permutação, no término fixado de um ano, dois no máximo.
Quarto – nenhum progresso se esperará, salvo o de por a céu aberto, periodicamente, tanto o resultado quanto as crises de trabalho.”[2]

[1]Cf. Lacan, J. “Ato de fundação”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003.
[2]Lacan, J. D’écolage, 11 de março de 1980

Quem faz Cartel? 
Os cartelizantes são tanto aqueles que praticam a psicanálise como qualquer um que deseje estudá-la. O que une os membros de um cartel é terem interesse pela investigação de um tema comum. Cada cartelizante delimitará uma questão que se agrega a esse tema comum de onde advém o título do cartel. Cada cartel se compõe de no mínimo três cartelizantes e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida.


Qual a função do Mais-Um?
O Mais-Um, que é escolhido pelos cartelizantes, também é um participante do cartel, mantendo, como os demais, uma questão dentro do tema mais amplo de trabalho. Ele, porém, deverá sustentar uma função específica de zelar pelo trabalho dos cartelizantes, incentivando a elaboração de cada um e favorecendo a exposição dos produtos do cartel. O Mais-Um é também o elo com a Escola e responde pela orientação lacaniana no cartel.


O que um Cartel visa?
O “produto de cada um” e um não um produto coletivo é o que se espera ao final de um cartel. Com esse produto pretende-se que cada cartelizante possa constatar e transmitir o que foi tocado na sua relação com o saber analítico. Os produtos do cartel podem ser expostos em espaços diversos da Escola, sendo a Jornada de Cartéis um momento privilegiado de se colocar a céu aberto as elaborações feitas a partir de tal dispositivo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O que pode a Psicanálise diante do destino para o pior? O Manejo do Tratamento das Toxicomanias no Avesso do Discurso do Mestre.

Uma versão especial do discurso do mestre: A resolução SMAS número 20 de 27 de maio de 2011, cria e regulamenta o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social, adotado pela prefeitura do Rio de Janeiro, prevendo o recolhimento e a internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua que fazem ou não uso abusivo de drogas. Ela viola a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e a Lei de Saúde Mental demonstrando o viés biopolítico da direção de tratamento nesses casos: execução da força policial para a efetuação do recolhimento dessas crianças e medicalização indiscriminada do psiquismo.

O que o sujeito, nesses casos, nos ensina? Um caso clínico de psicose, atendido por Julia Reis no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, nos ensina sobre a relevância de se determinar o estatuto do recurso à droga nesses quadros em que o NP revela seu limite diante do imperativo mortífero de satisfação, no avesso desta direção higienista de tratamento reduzida à exclusão social e à medicalização que despreza a estrutura em jogo.
Clarice teve diversas internações no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, em Niterói. Foi internada tanto no Serviço de Internação para Usuário de Álcool e Outras Drogas (SAD), como no Serviço de Internação para Agudos Feminino (SIAF), dependendo da avaliação dos médicos e psicólogos da emergência. Assim, quando achavam que o uso de crack era excessivo e a paciente poderia apresentar sintomas de abstinência a internavam no SAD, e quando entendiam que os sintomas psicóticos estavam mais agudos a internavam no SIAF. As internações de Clarice foram sempre a pedido da mesma, no momento em que pensava que podia morrer por causa do uso de crack (justificado na declaração de que se continuar assim vou morrer; estou pele e osso). O uso de drogas cumprira, para ela,
a função de reduzir o gozo mortífero das alucinações auditivas (a voz do Diabo). No entanto, verifica-se o fracasso de tal função na medida em que o uso de drogas a empurra para uma posição subjetiva em que só pode existir como dejeto para o Outro, marcando seu destino para o pior, conforme assinalado por Briole (2009) em Toxicomania. Un Lazo Social entre otros?, quando chegava à internação, estava sempre muito emagrecida, suja e machucada.
O que pode uma psicanálise? Sua última internação evidencia um processo de estabilização do quadro psicótico com o início de uma construção delirante através da bíblia: Deus enviava mensagens para que se afastasse dos ímpios - localizados nas pessoas com quem andava (traficantes e usuários de drogas) – e se protegesse seguindo os preceitos da igreja. Uma questão institucional revela como a internação pode se apresentar como uma demanda imperativa quando não se leva em consideração seu próprio funcionamento no caso único em questão.
No primeiro dia em que fez uma licença para ir ao local de tratamento extra-hospitalar a paciente só retorna dois dias depois para pegar medicação junto com uma profissional de saúde da equipe da enfermaria. Houve, então, uma divergência em relação à direção proposta pelos serviços: enquanto a exigência do Ambulatório era de retorno da paciente à internação, por ter fugido, a responsável pelo caso, ancorada no discurso analítico, defendia a possibilidade do tratamento extra-hospitalar pautada: 1. na escuta da decisão da paciente de se internar nos momentos em que a morte fazia seu anúncio; 2. na incidência do trabalho de formação delirante na regulação dos efeitos mortíferos da droga que a fixava na posição de dejeto para o Outro.
A psicanálise abre a via para uma relação com o gozo que habita a experiência subjetiva no avesso da proposta higienista do mestre contemporâneo. Sua ação
consiste em dar um contorno de humanidade referindo-o à linguagem em uma política de tratamento de substituição da droga pela palavra. Clarisse nos ensina que a política da palavra lhe permitiu a formação de um delírio para o tratamento de suas alucinações, lá onde a internação compulsória representaria o exílio do sujeito na posição de dejeto.
 Cartel: Cláudia Henschel de Lima (mais-um), Julia Reis da Silva Mendonça José Alberto Ferreira, Vera Aragon e Adriana Lipiani.

domingo, 18 de setembro de 2011

Novidades sobre o tratamento de usuários de crack

A Gazeta Online
Alucinados, eles vagam pelas ruas e não respeitam ninguém. Suas vidas resumem-se à busca pelo seu único objeto de desejo: o crack. E eles já são tantos, que não é mais possível ignorá-los como se pertencessem a um submundo que não nos atinge, pois estes ganharam áreas nobres e periferias e viraram um problema que, de uma forma ou de outra, toca a sociedade e é de responsabilidade de todos.
Além do sofrimento de famílias e amigos, a epidemia de crack - que já foi a droga dos pobres, mas hoje está em todas as classes sociais - significa aumento dos índices de violência, degradação do espaço urbano e toda uma geração perdida de crianças, que já nascem viciadas ou abandonadas pelos pais.
Somente no ano passado, o Estado gastou mais de R$ 2,3 milhões em 2.817 atendimentos e internações de viciados. Parte da verba foi destinada ao Hospital dos Ferroviários, em Vila Velha, onde funcionam, desde 2009, oito leitos destinados a crianças e adolescentes usuários de drogas.
O serviço é voltado para internação e desintoxicação, e 80% dos pacientes são meninos, com em média 16 anos. São garotos como João, 17 anos, que aos 14, já fumava maconha e bebia.
Como tantos outros, começou pela curiosidade. E viu a vida mudar de vez quando conheceu o fristo, mistura de crack com maconha. "Eu tinha mais moral, mais conceito. Era popular. Fiquei três semanas sem ir pra escola", conta.
Hoje, depois de duas semanas de internação, o sonho é voltar a ser o menino que era o orgulho da mãe. "Quero estar na igreja, dar um culto e ver minha mãe lá na frente. Ela já sofreu muito comigo", admite.
Do lado do crime
Antes de procurar ajuda, João foi deixando as boas amizades de lado, perdeu a namorada e foi acusado de roubo dentro da escola. Chegou a ser preso, depois de encontrar no tráfico uma alternativa para sustentar o vício.
Na família, não faltaram "parcerias" para o mau caminho. "Meu primo usava pedra, e tenho um tio preso. Quase toda a família do meu pai é viciada ou já cometeu algum crime para usar droga. Queria roupa, queria dinheiro para comprar presente para a namorada. Apelei para o crime."

Tudo acontece em uma velocidade incontrolável. São 12 segundos de alucinação e uma vida inteira de arrependimentos depois. "A pessoa fica na compulsão e faz tudo para obter a droga. Envolve-se em situações de risco, assalto e homicídio. Fica vulnerável, subnutrida, igual a um zumbi", explica Expedito Jorge Tavares, coordenador do Núcleo de Prevenção de Drogas da Polícia Federal no Estado.
Compulsão que Juliano, 17, sabe bem como é. "Uma vez, tomei uma cartela de diazepan, duas cachacinhas e fumei fristo. Tentei matar meu pai e meu cachorro. Dei um soco na TV. E só me controlaram depois que chamaram a polícia", lembra.
Quando mudou de cidade com a família, o garoto não se adaptou. Parou de ir à escola, começou a usar drogas. Pedro chegou a roubar para conseguir o crack. Não tinha forças, sozinho, para deixar as pedras de lado, mas pôde contar com a família.
Depois de 21 dias de internação, ele deixou o Hospital dos Ferroviários e foi direto para um projeto que conta com tratamento terapêutico. "Minha família me deu apoio quando disse que queria me tratar. Os primeiros dias foram sinistros, queria quebrar tudo."

Apoio essencial
Ter o apoio da família, como Pedro, pode fazer a diferença entre conseguir ou não derrotar o vício. "Nem sempre a família participa, o que seria fundamental para ajudar o usuário a enfrentar o mundo lá fora. Só a internação não é solução", ressalta a coordenadora da UTCA do Hospital dos Ferroviários, Bárbara de Oliveira.
Como explica a socióloga e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Marcia Rodrigues, a família deveria ser a primeira instância para dar referência a esses jovens. Mas não é isso que está ocorrendo, o que acaba produzindo uma geração perdida.
Como Simone, 38, que hoje, após várias recaídas, comemora cinco meses sem usar o crack, mas vê seus erros cobrarem um alto preço: usou a droga durante a gravidez, abandonou os filhos pequenos por causa do vício e hoje vê a filha mais velha ir pelo mesmo caminho.
"Perdi meus filhos, né? Eles afastaram-se, e isso é muito triste. Agora vejo minha filha de 15 anos nessa. Ela usava entorpecentes escondida e só soube quando ela foi presa, há três anos", lamenta.
Na primeira vez, a menina foi detida na escola, guardando uma arma para o namorado. Na segunda, estava traficando. Chegou a engolir quatro pedras de crack para não ir para a delegacia. Acabou no hospital.

Filhos: as vítimas
A dependência de filhos de mães viciadas em crack é ainda mais perigosa. O especialista em Dependência Química João Chequer explica que, desde que estava no útero, a filha de Simone já estava acostumada a utilizar o crack.
"Quando ela usou a droga aos 12 anos, se identificou com aquilo de forma maligna. Ela sente que já usou bioquimicamente o crack e a ligação dela com a droga é imediata e definitiva. É incontrolável", diz João Chequer.
Simone espera por dias melhores, apesar de tudo. "Agora minha filha está em tratamento, assim como eu", comemora. Mas a culpa não vai embora: "Se estivesse do lado dela, poderia ter sido diferente, ela se sentiria mais segura. Eu tive culpa, sim", sentencia.

*Os nomes dos entrevistados foram trocados para preservar as identidades

33% - dos usuários de crack morrem nos primeiros 5 anos de consumo, segundo estudo da Unifesp

A fala desses sujeitos revela a importância dos processos identificatórios com as figuras paternas para sua constituição subjetiva. Com a queda do poder paterno na atualidade, famílias fragmentadas, valorização dos objetos em detrimento das pessoas, essas crianças e adolescentes acabam usando drogas para pertencer a certo grupo social, ou mesmo para ter acesso a um gozo da ordem do excesso.
Diante desse panorama, o psicanalista Romildo do Rêgo Barros, em Opção Lacaniana nº46, nos coloca: "Poderão os psicanalista, a partir do que aprendem nas suas práticas, demonstrar que é possível a produção de novos significantes-mestres - ou de novos contratos -, após a dura experiência de falência dos ideais? Esta seria uma alternativa ao pior"

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Pontuações sobre o texto "A psicanálise verdadeira e a falsa", de Lacan (1958)





"A transferência é o vínculo com o Outro estabelecido pela forma de demanda a que a psicanálise dá lugar"







Esse artigo de Lacan é muito atual, na medida em que nos retorna acerca da prática lacaniana no nosso século.
Lacan assinala, que para distinguirmos a psicanálise verdadeira da falsa é preciso avaliarmos seu fundamento. A psicanálise autêntica é aquela que se baseia na relação do sujeito com a fala. E é Freud quem primeiro evidencia esse relação em "A interpretação dos sonhos", "Psicopatologia da vida cotidiana" e "Os chistes", em que a causalidade psíquica, mas nem tanto psíquica e sim lógica, é determinada pelo inconsciente.
"Toda a promoção da intersubjetividade na personalogia humana, portanto, só pode articular-se a partir da instituição de um Outro como lugar da fala. Essa é a 'outra cena', em que Freud, designa desde a origem o palco regido pela maquinária do inconsciente".
É através da formações do inconsciente - ato falho, lapsos, sonhos - que se satisfaz uma parcela do desejo. Entre a demanda e a satisfação que surge essa condição quase perversa que é em sua forma abasoluta o desejo. O desejo não aparece na fala, se satisfaz onde ele pode, onde não sofre os efeitos da censura realizada pela consciência. Mas porque o desejo é articulável na linguagem é que o psicanalista pode reconhecê-lo e assim fazer com que ali, onde o eu era, o isso possa advir, ou seja, "É no lugar do Outro que o sujeito se encontrará".
Lacan encerra o texto marcando que a resistência à psicanálise já não se encontra tanto nos leigos, mas sim entre nós, psicanalista, e por isso devemos repensar a psicanálise e restabelecer nossa missão:
"Não há dúvida que a confiança privilegiada na fala é o princípio de verdade pelo qual a psicanálise subsiste, a despeito da imbecilidade dos ideais com que ela o tempera".

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O principal motivo das crianças irem para as ruas é a negligência e o abandono familiar



Droga leva só 12% das crianças à cracolândia

O Estado de São Paulo

Apenas 12,4% das crianças e adolescentes que deixaram suas casas para viver nas ruas do centro da cidade tomaram a decisão motivados por uso de drogas. A negligência e o abandono da família são os principais motivos da ida para a rua (37,3%), seguidos pelas violências familiar (18,3%) e sexual (15,7%).

Os dados tomam por base 209 entrevistas feitas entre junho do ano passado e junho deste ano com crianças e adolescentes que passaram pelo espaço de convivência da região da República, que engloba o perímetro da cracolândia. O trabalho é coordenado pelo Projeto Quixote, organização social ligada à Universidade Federal de São Paulo que presta serviço à Prefeitura.



Não souberam explicar as razões para a ida para as ruas 56 entrevistados. "Esses dados mostram que concentrar a discussão na questão da internação e do crack é um enfoque simplista", afirma o psiquiatra Auro Lesher, coordenador do Quixote. "Não se deve "medicalizar" uma questão social. Depois de sair da clínica, se a criança encontrar a mesma realidade em casa, do que vai adiantar?"

Apesar de irem para as ruas por causa de problemas familiares, muitas crianças e adolescentes passam a usar tipos variados de drogas depois que ingressam na nova rotina. É o que constatam os educadores do Quixote e a Pesquisa Nacional sobre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que em março mostrou que 38,6% dos entrevistados não dormiam em abrigos por causa da proibição do uso de álcool e drogas.

Luta. Na tarde de ontem, na sede do Projeto Quixote, na Vila Mariana, zona sul da capital, o Estado encontrou Davi, de 12 anos, e Tamara, de 17, que até hoje lutam para seguir uma vida mais estável após morar na rua. Davi acaba de voltar de um mês de internação contra a sua vontade, a pedido da mãe. Disse que não queria falar sobre o assunto. Ele foi o filho temporão de uma família com três irmãos. Desde os 6 anos, Davi foge de casa. Aos 11, já morava na rua, onde passou a usar drogas.

No caso de Tamara, ela foi levada à rua pela mãe, que era dependente de crack. Morava na cracolândia com dois irmãos mais novos e viu a mãe engravidar de gêmeos. Aos 12 anos, já usava crack, como a mãe. Depois que deu à luz, o Projeto Quixote conseguiu que a mãe de Tamara se comprometesse a deixar a rua. Ela ficou por um ano em uma clínica terapêutica. Os filhos foram para abrigos e passaram a morar todos juntos quando a mãe saiu da internação.

A situação piorou quando a mãe voltou inesperadamente a engravidar. Ela retornou para as ruas aos poucos. Tamara, contudo, aos 17 anos, mora em um abrigo e segue firme na tentativa de ter um futuro sem tantos problemas. Seus quatro irmãos foram adotados. Algumas vezes, ela conseguiu resgatar a mãe e trazê-la de volta aos tratamentos.

"O importante nesses casos é que o crack não é o principal empecilho para trabalhar com as crianças. Estabelecer relação de confiança com essas pessoas e reestruturar a vida fora da rua é fundamental para que o tratamento funcione", diz o psicólogo Bruno Rocha.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro (ICP/RJ) - Curso Livre

Divulgando:


"Obra em obras¨


Bispo do Rosario e a invenção na psicose

Flavia Corpas e Marcus André Vieira

Data: sexta-feira 29 de julho das 15 às 1830hs
sábado 30 de julho das 10 às 1330hs

Local: EBP-Rio, Rua Capistrano de Abreu, 14, Humaitá.

Informações e inscrições 2286-7993 (secr. Rosane) ou icprj@terra.com.br
(será cobrada uma participação de R$ 40,00)

Arthur Bispo do Rosario passou cerca de 35 anos, interno na antiga Colônia Juliano Moreira, produzindo ininterruptamente diversos tipos de objetos. Impulsionada pela missão de reconstruir o mundo para apresentar a Deus no dia do Juízo Final, sua produção foi reconhecida a partir dos anos oitenta como uma das mais importantes obras de artes visuais do Brasil.

Abordaremos os trabalhos produzidos por Bispo do Rosario a partir da noção de invenção psicótica, proposta por Jaques-Alain Miller. Cada um de nós, seres falantes, precisa encontrar uma maneira de se situar no campo da linguagem. Algumas delas apelam para os discursos estabelecidos, criando saídas típicas. Entretanto, existem outras saídas que implicam na invenção de algo que não estava lá, como o que pode ocorrer na psicose, caso de Bispo.

1 - Qual biografia?
Serão apresentadas as visões e versões, por diferentes autores, de Bispo do Rosario. Abordaremos também a história do artista, contada por ele mesmo, extraída de seus depoimentos e de suas obras, a partir da construção dos diversos “eus” que ele cunhou na tentativa de encontrar para si um lugar na cultura, no Outro.

2 – O delírio
Abordaremos a construção do delírio de Bispo como uma dessas tentativas. Trabalharemos com a hipótese de uma elaboração delirante escandida em dois tempos: O primeiro, da revelação de sua identidade messiânica, e o segundo, da constituição de sua missão.

3 - Objetos
Os diversos objetos criados por Bispo serão apresentados e examinados com base na hipótese de que eles foram um suplemento essencial ao delírio e desempenharam papel decisivo na estabilização que permitiu a Bispo forjar-se um nome ou, nos termos de Miller, uma saída que permita ao sujeito um saber-fazer com o traumatismo da linguagem.

4 – Arte e invenção
Discutiremos os fatos e contextos que fizeram com que as invenções de Bispo do Rosario fossem elevadas à dignidade da obra de arte, interrogando a noção de invenção, proposta por J. A. Miller a partir do caso Bispo.

Bibliografia

Freud, S. [1919]. “O estranho”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVII, Rio de Janeiro, Imago, 1975.
_________. [1924a]. “A perda da realidade na neurose e na psicose”. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud: Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente, vol.III, Rio de Janeiro, Imago, 2007, p. 125- 134.
_________. [1924b]. “Neurose e Psicose”. In: _____, p. 93-102.
Lacan, J. “Introdução à questão das psicoses”. Partes II e III. In: O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1988, p. 25-54.
_________. “As imediações do furo”. Parte XX. In: O Seminário, livro III: as psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1988, p. 281-291.
_________. “Joyce, o sinthoma”, Outro Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 2003.
Miller, J. A. “A invenção psicótica”. In: Opção Lacaniana, vol. 36, São Paulo, Eólia, mai., p. 06-16.
_________. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan, Rio de Janeiro, JZE, 2010, lições 7 a 9.
Morais, F. “A reconstrução do universo segundo Arthur Bispo do Rosario”, In: Catálogo da exposição Registros de Minha Passagem pela Terra, MAC/USP, 1990, p. 18-25.
___________ . “Uma biografia em curso”, In: _____, p. 13-16.


¨ Tomamos de empréstimo a expressão utilizada pelo poeta, ensaísta e tradutor Décio Pignatari, para traduzir o texto de James Joyce Work in Progress, mais tarde publicado como Finnegans Wake.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A atualidade das discussões sobre o campo da Saúde Mental

Divulgando carta aberta de Luciano Elia, psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da UERJ, e supervisor clínico de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Caros colegas do campo da saúde mental,

Diante do cenário preocupante das últimas notícias sobre os movimentos ativos de setores retrógrados do campo da saúde mental e da repercussão de suas ações na esfera do poder público (Ministério da Saúde), dos decalabros na esfera das estratégias de "combate" às drogas que vem sendo colocadas em prática no Rio de Janeiro (internação compulsória de jovens usuários de crack em situação de rua, determinada pelo Secretário de Assistência Social (ex-Ordem Pública e Choque de Ordem) e que serão logo copiadas por outros grandes estados brasileiros, senão pelo próprio (Estado brasileiro), e do quadro não menos grave que as próprias políticas públicas e sua regência por posições tomadas a partir do próprio "executivo federal", titular do dito Estado, a nossa Presidenta da República, vem tomando, decidi sair do silêncio em que vinha me mantendo e procurar o diálogo com meus colegas de campo. Desculpem o longo texto, mas como só o lerá quem desejar fazê-lo, tá tudo OK, certo?

Penso que é preciso ter muito cuidado quando, no atual cenário político-social brasileiro, fala-se em "rever a política de saúde mental" ou mesmo "avaliar os serviços" (leia-se, os CAPS), "melhorar sua eficîência" e outras "providências". Quem levantaria uma voz crítica contra iniciativas como esta da gestão pública da saúde, ou que lhe são sugeridas por setores da sociedade "interessados no bem comum e nos direitos sociais dos cidadãos, entre eles o direito à saúde pública e de qualidade"? À primeira vista, avaliar os serviços, melhorar sua qualidade e até mesmo rever as suas formas de funcionamento é o que de maior probidade teria o poder público a fazer em sua tarefa maior de garantir à população o direito às práticas mais eficientes e qualificadas de saúde e de saúde mental.

No entanto, essas iniciativas não são produzidas sob a égide dos motivos que declaram. O discurso que se pauta por um aparente tecnicismo, eficientismo, estabelecimento de metas, qualidade, produtividade, rentabilidade, otimização e outros tristes termos do vocabulário tecno-burocrático que é pioritariamente proferido nas esferas da gestão pública "moderna" esconde, na verdade, os seus verdadeiros motivos.

O processo de reestruturação da assistência psiquiátrica no Brasil é indissociável dos eixos históricos políticos que atravessam e constituem o tecido da social brasileiro ao longo de muitas décadas de nossa História. A reorientação do modelo de assistência, a substituição das práticas manicomiais e hospitalocêntricas pelas práticas territoriais e comunitárias (que não exclui o recurso à internação mas o submete a uma lógica de monitoramento que não faz da internação o centro de gravidade das práticas clínico-assistenciais), a pluralização de discursos, saberes e práticas para além da psiquiatria estritamente medicalizante, a multiprofissionalização na composição de equipes, sem prejuízo de nenhuma das profissões que passaram a integrar o amplo espectro técnico em saúde mental, a exigência de que a direção política, técnica, gestora e o modo de conceber e contratar os recursos humanos - o mais importante recurso tecnológico do campo - sejam públicas e não parceirizadas ou compartilhadas com setores privados da sociedade, a recusa dos especialismos, enfim, tudo isso compõe o complexo campo da atenção psicossocial (que por isso mesmo não é constituída de "serviços especializados" nem se define pelo caráter "primário" ou "não-primário" da atenção que presta, mas especifica-se por ser atenção psicossocial).

Este campo, mais do que um mero novo modelo técnico de assistência em saúde mental, consiste em uma resposta político-social e assistencial a um longo, insidioso e nocivo processo de desassistência, reclusão e exclusão institucional não apenas dos loucos, mas também dos mais diversos quadros de vulnerabilidade, desproteção e risco social com graves conseqüências psíquicas, como o abuso de álcool e drogas em diversas faixas etárias, particularmente em crianças e adolescentes, exposição às mais variadas formas de violência, risco letal, etc. Como resposta a este quadro de produção ativa de desassistência e despreteção social à mais numerosa faixa da população brasileira. cuja estatura não é frágil, porquanto resulta de um longo processo histórico que lhe rende robustas raízes, o campo da atenção psicossocial visa revertê-lo. E vem conseguindo fazer isso, ainda que com o escandaloso declínio do investimento público em sua rede, a que vimos assistindo nos últimos tempos. A eficácia do campo da atenção psicossocial pode ser verificada nos efeitos produzidos na população e nas comunidades territoriais onde os CAPS implantados têm efetivo apoio público e conseguem, com isso, ordemar uma rede de assistência eficaz intra e intersetorial, de equipamentos de saúde e de outros setores estratégicos do campo. Há significativa redução de internação nesses territórios, diferentes formas de sustentação de laços sociais antes impensáveis entre os usuários, elevação do nível de entendimento de inclusão nas comunidades em que vivem (efeitos nos não-usuários mas em seus parceiros sociais), entre outros indicadores, inclusive epidemiológicos. Não é à toa que a IV Conferência Nacional de Saúde Mental-Intersetorial, realizada em julho de 2010 em Brasília, reafirmou, quase que em sua integralidade, os princípios e ações do campo da atenção psicossocial, ainda que alguns gestores e setores operantes neste campo prefiram não levar isso em conta.

Por isso, trazer a questão da eficiência da rede de atenção psicossocial, dos CAPS, é prática que só se pode legitimar a partir do interior de uma posição política que se paute por essas diretrizes e concepções. Apontar ineficiência, propor avaliação dos CAPS, dicutir o nível de qualificação das equipes, etc. é o que de melhor teríamos a fazer, se essas propostas não fossem formuladas de forma inteiramente alheia e até mesmo francamente antagônica aos eixos constitutivos do próprio campo e ao processo histórico-político que lhe deu existência. Qualquer tentação ou tentativa de avaliar a rede de atenção psicossocial à luz de um mero tecnicismo cientificista e pseudo-eficiente fracassa porque:
1) concebe eficiência fora dos parâmetros metodológicos em que ela esta categoria seria aplicável aos serviços que pretende avaliar; e
2) produz um tipo de eficiência que, embora pretensamente pautada no que se chama "evidência científica", despreza o mais rasteiro nível de realismo (dos erros em matéria de ciência, o mais grave) quanto à experiência mesma de afecção mental e sofrimento psíquico que os indivíduos cujo tratamento é investigado em sua eficiência, limitando-se às infindáveis descrições de "transtornos" do DSM IV, aparentemente objetivas e fidedignas mas inteiramente desprovidas de lógica, etiologia e conceituação teórica, o que consequentemente as faz mergulharem no mais obscurantista abstracionismo especulativo (do tipo: "uma criança que porventura não tiver sido tratada com ritalina de seu suposto TDA/H na infância será provavelmente um usuário contumaz de drogas na adolescência" - se não droga antes, droga depois -, sem que, em nenhum momento, a realidade clínica, apreensível pela mais simples anamnese, seja levada em conta).

Mas na verdade o fracasso da empreitada se vê facilmente recuperado no plano político: o real objetivo nunca foi, em nenhum momento de seu trajeto, o de avaliar seriamente o campo da atenção psicossocial e suas questões, dificuldades e falhas, mas o de derrubá-lo, a priori, porque ele produziu uma realidade social e institucional concreta que deixou de atender aos interesses econômicos (de financiamento público da malha de leitos e hospitais psiquiátricos, e da indústria farmacológica), políticos (de uma recuperação da hegemonia médica em matéria de saúde mental, hegemonia perdida pela pluralização de práticas, saberes e profissões) e pseudo-científicos e acadêmicos (relativos aos paradigmas que passaram a dominar o campo da medicina do comportamento, cópula "científico"-capitalista - o primeiro termo entre aspas pelo respeito que devemos à austera dama da Ciência que não é esta, impostora e sustentada pela hegemonia de mercado, que se apresenta no campo do comportamento humano na contemporaneidade).

Na verdade, os médicos, os psiquiatras, são de fundamental importância no sucesso do campo de atenção psicossocial, que, a meu ver, não existe nem é viável sem eles. Eles se dizem, no entanto, excluídos, desrespeitados, desprestigiados, e abandonam, corporativa e coletivamente, este campo que "não os reconhece nem respeita". Será? Ou será, pelo contrário, por saberem muito bem que teriam um enorme papel a desempenhar, decisivo mesmo, neste campo, que eles o abandonam, para inviabilizá-lo, já que, no paradigma atual que rege sua formação, os modelos a que aderem são outros, privatizantes, organicistas, medicalizantes, neurocientíficos, comportamentalistas? Onde estão os psiquiatras clínicos que gostavam mesmo de adentrar a experiência fenomenológica dos "doentes mentais"? Onde estão os psiquiatras sociais, os psiquiatras marxistas, os psiquiatras críticos?

Assistimos a um preocupante crescimento de um de ovo da serpente, que toma corpo na terrorificação das drogas, sobretudo do crack, visto como o próprio demônio em forma de pedrinhas de fumaça que em pouco tempo exterminarão os jovens na rua além dos cidadãos que esses jovens exterminarão como conseqüència do uso de crack. E cresce o ovo: o pensamento higienista, condenatório, excluidor, que por má-fé identifica tratar com fazer desaparecer do cenário público e urbano, da rua, aqueles de quem supostamente se quer tratar , internando-os em "casas", abrigos, comunidades terapêuticas ou hospitais "especializados" para que esses jovens sejam "eficientemente cuidados até que parem de usar drogas" (!). A Justiça, até mesmo as Promotorias de Infância, acabam por considerar essas medidas adequadas, ou "adequáveis". O secretário municipal de Assistência Social é o arauto da idéia e da portaria que institui a internação compulsória de jovens em situação de rua e uso de crack. A população, grande parte dela, apóia, como apóia tudo que os políticos que "limpam" as cidades inventam. O Rio de Janeiro continuará mais lindo do que nunca, agora com menos pivetes cheirando crack em copinhos de guara-vita nas esquinas e cracolândias generalizadas, preparado para a copa do mundo, os jogos olímpicos. Despoluído. Todo mundo celebra: o Rio em ascensão, depois de ter sido jogado na sargeta do Brasil, agora é reerguido pelas mesmas política e mídia que antes o afundaram. E a população agradece. Pela via das drogas, os setores mais retrógrados encontraram a via de promover o retrocesso político e assistencial pelo qual tanto ansiavam, há anos: a remanicomialização da "assistência" em saúde mental!

Mas será que podemos continuar acusando, ingenua, pueril, cega e neuroticamente, os "nossos adversários"? Não estariam entre nós, ou mesmo em nós, esses adversários? O campo da saúde mental é coeso, é discursivamente sustentado pelos princípios que declara? Ou é estilhaçado, fragmentado, e em muitos de seus fragmentos se compraz com as OSs que o dominam, com a tecnocratização que o corrói, com a guinada à direita que o norteia? Basta reunir um certo número de "colegas de campo" que se evidenciará a mais ruidosa polifonia de posições contrastantes: alguns defenderão que a tônica deve ser mesmo a atenção primária, os NASFs e PSFs em detrimento (não em conjugação) com a rede de atenção psicossocial, os mesmos defenderão que "CAPS é serviço especializado porque não é atenção primária", outros defenderão (por vezes ainda os mesmos) as OS como garantindo maior eficiência nos atendimentos. Outros dirão com aquele ar de sabedoria histórica que "os CAPS já cumpriram sua missão". E poucos ainda restarão a defender seriamente concursos públicos, investimento público em recursos humanos estáveis e comprometidos, bons salários (pagos pelo Estado), políticas públicas pautadas democraticamente em conferências coletivas, rede articulada e pública, serviços e equipes acompanhados por supervisão clínico-territorial, etc. etc. etc. - enfim, as boas práticas em saúde mental, aquelas que, maciçamente investidas pelo poder público e assimiladas pelo tecido social, dariam certo.

A pergunta que não quer calar é: por que esse movimento anti-Reforma, anti-campo da atenção psicossocial, anti-territorial, encontra tantos adeptos, é tão bem recebido por tantos ouvidos, chega tão sem resistência a tantos setores, até mesmo da gestão pública? Por que a nossa Presidenta da República, tão afeita, em sua própria história pessoal, às questões sociais e políticas que sempre assolaram o povo brasileiro, é tão favorável a práticas judicializantes e repressivas do uso de drogas, que sob seu comando direto pautam cada vez mais a política nacional anti-drogas da SENAD, que ela transferiu do gabinete institucional da Presîdência da República para o Ministério da Justiça, afastando-a mais ainda do Ministério da Saúde, onde deveria estar? Por que o próprio Ministério da Saúde é sempre tão receptivo a ouvir entidades como a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) se não desconhece que as posições desta entidade não são apolíticas nem gozam da neutralidade "científica" que apregoam, enquanto que enfraquece cada vez mais o campo da atenção psicossocial, que é de sua própria alçada e criação? O que leva a Sra. Dilma Roussef a defender, desde seu discurso de posse, e de modo tão pressuroso, a parceria com setores privados, na própria saúde? O que leva a mesma presidenta a apoiar as comunidades terapêuticas (religiosas) como recurso para internação de jovens usuários de drogas, e paralela e simultâneamente desapoiar a política nacional de tratamento do uso abusivo de drogas pautado na lógica da redução de danos, do tratamento em comunidade (não a terapêutica, que exclui e segrega o jovem, mas sua comunidade territorial), consultório de rua e ampliação da rede de CAPS-AD?

Talvez seja hora de pararmos de acusar o "outro" de "nosso movimento" e interrogar de que fios e eixos este movimento vem se tecendo, para que tenhamos mais clareza do que queremos, se tanto é que queremos algo que seja comum a um número significativo de nós, que possa ter, hoje, o lugar de causa para algum movimento.
Luciano Elia

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A ascensão do objeto a na contemporaneidade e seus efeitos sobre a arte

A ascensão do objeto a na contemporaneidade tem como um dos seus efeitos no contemporâneo uma mudança radical no conceito de arte, esta já não é o que era antes. Marcel Duchamp começou sua carreira como artista criando pinturas de inspiração impressionista, expressionista e cubista. Contudo, ele se consagrou ao expor sua obra A fonte no museu, um urinol, que desestruturava a arte conforme defendida pelos padrões burgueses.














Outro artista, Damien Hirst, promove ainda mais o abalo do valor simbólico dos objetos de arte ao produzir uma obra intitulada For the love of God: um crânio cravejado de 8.601 diamantes, que tinha mais diamantes que a coroa utilizada pela rainha da Inglaterra em ocasiões especiais. Em outra instalação apresentou um par de vitrine repleto por pílulas de remédios. Esses objetos reduzem o valor simbólico ao da mercadoria, e demonstram a futilidade dos bens de consumo. De tal forma que denunciam a queda do Ideal e do Pai enquanto aquele que operava como um regulador de gozo, e, consequentemente, a ascensão do objeto a, dos objetos de consumo. (Henschel de Lima, C. & Gonin, G. "impactos del ascenco del objeto en la contemporaneidad: body-art y adicciones". In: Pharmacon, n.11, El lazo social intoxicado . Buenos Aires: Grama Ediciones, 2009).



OPÇÃO LACANIANA ONLINE Nº5


A composição de Opção Lacaniana Online nova série demanda fazer conjunto da pluralidade do material que se recebe, uma vez que a revista não costuma propor um tema. O resultado mostra que, sem seguir à risca o programa de produção de saber da EBP/AMP, o material não deixa de indicar vivamente o desejo que o anima.
Além disso, é interessante observar a pluralidade dos autores. A revista sustenta um espaço aberto ao turbilhão na Escola, publicando textos de recém-chegados, desejosos de encontrar na comunidade um lugar de endereçamento, ao lado de textos de membros renomados, que enobrecem a revista.
Abrimos este número com uma conferência de J.-A. Miller na qual, a partir da proposta lacaniana “Não digo ‘a política é o inconsciente’, mas simplesmente ‘o inconsciente é a política’”, ele nos apresenta oito reflexões sobre psicanálise e política, em especial, quando a cidade não existe mais e a psicanálise corre o risco da depreciação.
Alguns dos títulos dessas reflexões servem de isca para apresentar o sumário e propor aos leitores uma conversa entre os artigos. Três deles vão de encontro à Quinta reflexão: Freud e a rainha Vitória, pois cuidam da loucura do sexo no labirinto dos significantes: “O homem dos ratos”, “Século XXI: a escolha do sexo no labirinto” e “O parceiro amoroso da mulher atual”.
Conversam com a Sexta reflexão: Lacan e o rei gozo três outros textos que tratam da política da fala em coalescência com o real: “O passe, o rateio e um psicanalista”, “A ética da enunciação analisante desde Sigmund Freud” e “‘Falar de si’ na contemporaneidade: ‘uma máquina de impostura’?”
Outra série de artigos se afina com a Sétima reflexão: o tratamento analítico na época da globalização. São eles: “A política do sintoma na clínica da saúde mental: aplicações para o semblante-analista”, “A psicanálise possível frente à tragédia”, “O diagnóstico diferencial na clínica das toxicomanias” e “’Controlando a minha maluquez misturada com minha lucidez’: experiência de um praticante de psicanálise”.

Entregamos então ao leitor o número 5 de Opção Lacaniana Online clicando em: http://www.opcaolacaniana.com.br/

Heloisa Caldas

Sumário

Intuições milanesas - Jacques-Alain Miller

O homem dos ratos - Esthela Solano-Suárez

Século XXI: a escolha do sexo no labirinto - Carmen Táboas

O parceiro amoroso da mulhar atual - Lêda Guimarães

O passe, o rateio e um psicanalista - Alberto Murta

A ética da enunciação analisante desde Sigmundo Freud - Fernanda Otoni de Barros- Brisset

'Falar de si' na contemporaneidade: 'uma máquina de impostura'? - Ana Paula Britto Rodrigues

A política do sintoma na clínica da saúde mental: aplicações para o semblante-analista - Paula Borsoi

A psicanálise possível frente à tragédia - Rachel Amin de Freitas

O diagnóstico diferencial na clínica das toxicomanias - Julia Reis

Controlando a minha maluquez misturada com a minha lucidez: experiência de um praticante de psicanálise - Wilker França

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Internação compulsória de crianças e jovens por crack divide opiniões no RJ

G1

Detidos só são liberados quando são considerados livres do vício.


Desde uma resolução da prefeitura, no final de maio, que obriga crianças e adolescentes detidos nas cracolândias a ficar internados para tratamento médico, mesmo contra a vontade deles ou dos familiares, o Rio vive uma polêmica em relação ao combate ao crack. A internação obrigatória divide opiniões.
De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), os jovens só são liberados quando agentes os considerarem livres do vício. Segundo a prefeitura, a internação compulsória, como é chamada, não desrespeita o Estatuto da Criança e do Adolescente nem a Constituição.
O centro de acolhimento "Casa Viva" é um dos locais da prefeitura para tratar dependentes químicos. Mais de 30 funcionários estão envolvidos na recuperação de adolescentes viciados, que atualmente são oito. Além de receberem as refeições do dia, eles participam de brincadeiras e recebem atendimento médico e psicológico.
No dia 25 de maio, após a publicação da prefeitura, a secretaria fez a primeira operação conjunta com a PM, na Favela do Jacarezinho, no Jacaré, no subúrbio do Rio, de combate ao crack.
Após diversas operações realizadas no Rio, 760 pessoas foram recolhidas, sendo que 169 delas eram crianças. A informação é da secretaria.
Desde o dia 31 de março, as polícias civil e militar fizeram 10 operações para retirada de usuários de crack das ruas. A maioria, na Favela do Jacarezinho; outras três também no subúrbio; duas no Centro e uma na Zona Sul da cidade.

Contudo, a aplicação da internação compulsório para os usuários de drogas ainda é uma novidade e deve ser discutida entre os diversos profissionais envolvidos no encaminhamento e no tratamento, exigindo um trabalho transdisciplinar, pois não se trata somente de retirá-los da rua, mas resgatar sua auto-estima, subjetividade e resgatar os laços familiares destas crianças e adolescentes.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Judith Miller: 'Cada um de nós tem seu grão de loucura'

No mundo de hoje, em que a indústria farmacêutica vende antidepressivos como bombons e proliferam métodos prometendo “cura” rápida dos problemas, Judith Miller — filha de Jacques Lacan, psicanalista francês de maior influência do século XX — parte numa espécie de cruzada contra a ideia de que se pode (ou deve) apagar o “grão” de loucura que existe em cada ser humano para adaptá-lo às exigências da sociedade de consumo e produção.

Em entrevista ao GLOBO, Judith critica duramente as chamadas terapias cognitivo-comportamentais (TCC) que, segundo ela, buscam isso: “normalizar” e adaptar o comportamento das pessoas, prometendo a “felicidade”. O que bate de frente, explica, com um dos preceitos da psicanálise.

— Cada um de nós tem seu pequeno grão de loucura. Lacan anunciou no seu seminário: “todo mundo é louco”. É este grão de loucura que faz com que cada um de nós tenhamos um modo próprio de ser, de abordar as coisas, de reagir. A socialização não pode evitar isso — sustenta ela.

Judith, que não é psicanalista (é filósofa) e preside a Fundação do Campo Freudiano, desembarca no Brasil na próxima semana para participar do V Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (V Enapol) e do XVII Encontro Internacional do Campo Freudiano, que acontece dias 11 e 12 sob o tema “A saúde para todos, não sem a loucura de cada um”. Dia 9 ela estará na abertura da mostra “Às vezes, a arte”, com obras de artistas do Campo Freudiano, na Galeria Antonio Berni, em Copacabana.

Antes, no dia 8, ela participará de uma palestra na livraria Travessa do Leblon sobre o lançamento do livro “Perspectivas dos ‘Escritos’ e dos ‘Outros escritos’ de Jacques Lacan” (Zahar Editora), ao lado da editora Cristina Zahar, do psicanalista argentino Leonardo Gorostiza e Angelina Harari, assessora da coleção Campo Freudiano no Brasil. O autor do livro é o psicanalista Jacques-Alain Miller, marido de Judith e designado pelo próprio Lacan como herdeiro intelectual de sua obra e ideias. Miller reúne no livro extratos de suas aulas na Universidade de Paris VIII, de 2008 a 2009, nas quais ele defende um retorno à obra de Lacan e à “psicanálise pura”.

Judith diz que a importância desta obra é que Miller transcreve as aulas sobre Lacan num momento em que “achou necessário relembrar aos analistas lacanianos que a psicanálise aplicada, do lado terapêutico, não representa toda a psicanálise”. Miller acusa os chamados terapeutas comportamentais de tratarem as pessoas como “uma força de trabalho”. E quem não se adapta à norma acaba reduzida à categoria de “perigosa para o capitalismo”.

— Uma pessoa não pode ser reduzida a um consumidor/produtor! — revolta-se.

A psicanálise, explica a filha de Lacan, trabalha no sentido oposto: do reconhecimento e aceitação da singularidade de cada pessoa.

— Lacan inventou um dispositivo em psicanálise chamado “la passe”, através do qual se verifica que, no final de uma análise, a pessoa analisada sabe discernir qual a sua diferença absoluta em relação às outras pessoas. Ou seja: ele vai saber viver com esta diferença em sociedade — diz Judith.

A filósofa ataca também as indústrias farmacêuticas e a Organização Mundial de Saúde (OMS), por associarem saúde mental à “felicidade de todos”. A “depressão” de hoje, diz, é sobretudo “uma questão comercial”:
— Querem vender antidepressivos que colocam as pessoas num estado eufórico, quando não há razão de estar eufórico.

Aos que acreditam em “terapias rápidas que visam erradicar logo os sintomas”, Judith Miller responde com uma frase do pai da psicanálise, Sigmund Freud: sintomas rechaçados pela janela voltam pela porta. A psicanálise, diz Judith, “não promete a felicidade, mas assegura um desejo de viver esclarecido”. Aos que apelam para antidepressivos, terapias curtas e comportamentais para lidar com o sofrimento, Judith alerta:

— Cedo ou tarde, as pessoas que sofrem acham a porta aberta para fazer psicanálise.

Judith também disse que levará para o Rio de Janeiro um documentário que a chocou profundamente. Em nome do combate à delinquência, o governo francês estaria usando métodos de terapia comportamental para testar níveis de violência nas crianças — uma experiência que ela classifica de “chocante, desumana”. O documentário mostra como crianças são submetidas a um jogo truncado, no qual não há chance de ganhar. É um teste para ver como reagem diante do fracasso.
— O que fazem com as crianças é um horror! Colocam-nas numa situação que enlouqueceria qualquer ser constituído, tudo isso em nome do combate à delinquência — conta Judith.