Vivemos, na atualidade, um momento em que nunca pensamos viver: o isolamento social em função de um vírus (coronavírus) sobre o qual, inicialmente, não tínhamos muito conhecimento, e até hoje (meses após o início do isolamento social) os cientista continuam na busca de novas informações, tratamento e vacinas.
Então, todos estamos lidando, cada qual ao seu modo, com questões relativas a morte e também ao luto, entendendo aqui o luto não somente como a perda na realidade de um ente querido, mas as perdas sucessivas que nos estão sendo impostas como um modo de proteção de nossos corpos e que acabam afetando, em maior ou menor grau, nossa saúde mental.
A morte que na idade
média era considerada como um processo natural e justo (ÀRIES, 1981) – “Sobre a
história da morte no ocidente desde a idade média” -, com todos seus processos simbólicos e
acompanhadas por crianças (KÜBLER-ROSS, 1985), a partir do século XVI começa a
ser pensada e sentida de modo diferente. Com o aumento da dimensão afetiva
associada ao processo de morte, esta passa a ser encarada como inimiga,
transgressora e escondida. O sujeito que antes morria junto de seus familiares,
hoje morre afastado dos mesmos, preferencialmente em hospitais. Há, deste modo
um tabu e um temor da morte.
A dificuldade de
lidar com a morte assola não só os familiares dos pacientes, mas também os
profissionais de saúde, na medida em que o hospital é visto como um lugar de
tratamento, de cura e de vida. Lidar com a finitude do próximo é lidar com a
nossa própria e por isso esse contato é cercado de temor e evitação (KÜBLER-ROSS, 1985). Por isso a importância de
profissionais capacitados nos cuidados paliativos para atender tanto os
pacientes, como familiares, cuidadores e também à equipe médica, para que se
possa amenizar o modo como cada um lida com a finitude, a solidão, o sofrimento
psíquico e o luto.
Minha experiência clínica
no HUAP na clínica de cuidados paliativos: os cuidados paliativos se colocam
como uma tentativa de resgate do entendimento da morte como um processo
natural, que ocorria de modo confortável e que tinha um modelo de compreensão
que considerava tanto aspectos culturais como religiosos. Havia um significado
da morte atrelado à religião, o que também promovia um certo conforto e menos
temor frente a isso que escapava ao controle dos sujeitos. Twycross
(2003) assinala que os cuidados paliativos não se limitam, portanto, ao alívio
dos sintomas e sim ao cuidado e escuta também dos fatores psicológicos,
espirituais e sociais além dos físicos, a fim de que os sujeitos possam
construir, cada qual a sua maneira, um significado para seu processo de
adoecimento e morte.
Uma grande referência
nessa área são os estudos da psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross, que desenvolveu
um trabalho de entrevistas com pacientes com doenças em estágio avançado, com o
objetivo de proporcionar um espaço de escuta e acolhimento para os doentes, a
fim de que eles pudessem falar sobre seu sofrimento psíquico e sobre o avanço
de sua enfermidade.
Kübler-Ross (1985)
descreve cinco estágios do luto e da perda pelos quais os pacientes passam:
negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Na negação, os sujeitos negam a situação para
combater as emoções que estão experimentando por causa de sua perda. Muitos nem
conseguem falar sobre a doença e se referem ao câncer como “aquilo”, “aquela
coisa”. Após isso vem a fase
da raiva, que ocorre quando os efeitos da negação começam a se
desgastar. A raiva envolve uma efusão de emoções daquele que sofre, como a
irritação, medo e culpa. Na
fase de negociação/barganha ocorrem os pensamentos sobre fazer algo para
reverter o acontecido. A
quarta fase do luto é a depressão, que surge quando os sujeitos têm de
enfrentar os aspectos práticos da sua perda. Durante esta fase, aquele
está sofrendo requer uma série de cuidados e atenção de seus entes queridos, em
função de episódios recorrentes de choros e de isolamento. A fase final é a aceitação,
que pode envolver a retirada da depressão e o surgimento de uma sensação de
calma. O sujeito consegue enxergar a realidade como realmente é, ficando pronto
para enfrentar a perda ou a morte. Contudo, destacamos que essas fases não
ocorrem nessa ordem específica, cada sujeito tem seu próprio processo a fim de
elaborar simbolicamente seu luto, ou suas perdas.
No texto “Luto e
melancolia”, Freud, (1917/1996) localiza o luto como uma reação, um afeto
normal, que surge como um modo de lidar com a perda de um objeto de amor ou
ideal. Segundo o autor, há no luto um trabalho simbólico para lidar com
a perda, que permite ao sujeito reinvestir libidinalmente em um outro laço.
Na melancolia, o sujeito
lida com essa perda de modo distinto, considerado como patológico: há uma
identificação com o objeto perdido. Quatro tipos de psicose: mania, melancolia, paranóia e esquizofrenia.
Encontramos uma das primeiras referências de Freud (1895/1996, p. 247-52)
sobre a melancolia no “Rascunho G”, em que ele destaca que neste tipo de
psicose busca-se recuperar algo que foi perdido na vida pulsional. Esta perda instala um empobrecimento da excitação –
também descrito como uma “hemorragia interna” –, uma inibição psíquica e um
grande sofrimento.
Freud (1917[1915]) desenvolve de maneira mais detalhista as
características da melancolia em “Luto e melancolia”, que pertence a uma série
de textos intitulados Artigos sobre metapsicologia, nos quais Freud trabalha
intensamente os conceitos de inconsciente, pulsão e recalque. Ali ele coloca que, apesar da melancolia
poder se constituir a partir da perda de um objeto amado, há algo inconsciente
a respeito da perda, pois não se sabe o que se perdeu. Ele apresenta como
traços distintivos da melancolia: Um desânimo profundamente penoso; a cessação
de interesse pelo mundo externo; a perda da capacidade de amar; a inibição de
toda e qualquer atividade; uma diminuição dos sentimentos de auto-estima; expectativa
delirante de punição (p. 250).
Na melancolia, a libido, ao invés de se deslocar para os objetos, é
retirada para o próprio eu, de tal modo que há uma identificação do eu com o
objeto. Como o amor pelo objeto encontra refúgio na identificação narcísica, recai
sobre o eu os sentimentos que antes eram direcionados para o objeto: tanto o
ódio, na forma de degradação e depreciação, como uma tendência para a morte
(Freud, 1917/1996, p. 254-255).
Ariel Bogochvol (2008, p.
54) ressalta que a descrição freudiana da melancolia como uma neurose narcísica
equivale à psicose na terminologia lacaniana. Compreende-se a melancolia como
uma psicose, na medida em que ela não corresponde a uma formação do
inconsciente, e sim a um efeito no eu diante do encontro com a foraclusão, em
função da perda de objeto. O autor prossegue dizendo que essa perda faz o
sujeito se deparar com a foraclusão, em função da inexistência de um i(a)
sustentado pela função fálica da castração. A característica principal da
melancolia, tal como descrita por Freud, é que “a sombra do objeto cai sobre o
eu” (Freud apud Bogochvol, ibidem).
Ao perder suas vestes narcísicas o sujeito se vê totalmente identificado com o
objeto/dejeto. A não separação/extração do objeto na melancolia marca o
apagamento do desejo nesses sujeitos, cujo efeito compreende a auto-mutilação,
os fenômenos alucinatórios (voz imperativa, injuriosa).
Retomamos Freud (1917[1915]), em “Luto e melancolia”, para apresentar
a definição de mania na psicose, em comparação ao afeto normal de luto
processado na neurose. Segundo ele, o conteúdo da mania não difere da
melancolia, ainda que os sintomas apresentados sejam opostos: enquanto na
primeira impera a alegria, o triunfo e a exaltação, a segunda é caracterizada
pela depressão e inibição. O “complexo” com o qual se lida em ambas as
tipificações da psicose é o mesmo: a perda de objeto. Porém, se na melancolia
“o eu sucumbe ao complexo”, na mania o eu “domina-o ou o põe de lado”,
procurando vorazmente novos objetos de investimento libidinal (ibidem, p. 259).
Desse modo, entendemos que o luto
não se limita apenas à morte, mas o enfrentamento das sucessivas perdas reais e
simbólicas durante a vida dos sujeitos, em que um processo psicanalítico se coloca com o objetivo de ajudar o sujeito nessa elaboração simbólica.