segunda-feira, 9 de abril de 2018

A interpretação borromeana

Texto de Jean Pierre Deffieux, de fundamental importância para que possamos compreender a queda do falocentrismo na atualidade.

Deslocar a interpretação do enquadre edipiano para o enquadre borromeano é mudar a própria noção da interpretação do sintoma em psicanálise.
No enquadre edipiano, a interpretação do sintoma tem por objeto o sentido, assim como toda formação do inconsciente. A interpretação é significante. Ela parte do significado para encontrar o significante inconsciente que está ligado a ele. É o modo da interpretação freudiana e, mesmo se ela se articula ao rochedo da castração, segundo a orientação de Lacan a partir do Outro barrado, ela não prescinde do sentido mesmo da castração.
Da mesma forma, quando Lacan articula a interpretação ao objeto a para tentar apanhar um pedaço do real, o objeto causa do desejo, a interpretação não se separa de uma intenção de sentido e de um querer dizer.
Apesar de todos os avanços teóricos de Lacan até os anos 70, parte do sintoma resiste e não conseguimos esvaziar totalmente o sintoma. Permanece o que Jacque-Alain Miller chamou de restos sintomáticos.
Lacan procurou, em seu último ensino, definir esse real do sintoma, não-interpretável no sentido tradicional da interpretação. Deu a ele um novo nome, o de sinthome, e lançou um novo ternário – último tópico lacaniano –  o ternário borromeano do imaginário, do simbólico e do real. Essa abordagem com a qual estamos familiarizados nesses últimos anos graças ao ensino de Jacques-Alain Miller, nos engaja em uma nova prática da psicanálise, em particular a da interpretação.
A resistência furiosa do sintoma, que nenhuma escuta ou palavra pode apagar, leva a inventar algo novo.
Esse real do sintoma, como abordá-lo a partir do simbólico? Começando por modificar nossa apreensão do simbólico, tomando a linguagem em um nível diferente daquele da linguagem articulada que visa o sentido e a comunicação, não aquele do Outro da linguagem, mas sim aquele do Um, isto quer dizer uma linguagem material, reduzida à sua materialidade significante, reduzida à letra: um significante, certamente, mas isolado de qualquer outro significante, isolado do sentido e repleto de gozo. É o que Lacan conseguiu definir em seu último ensino: a disjunção entre sentido e real.
É a partir daí que podemos colher o osso do sintoma, que Lacan denomina de sinthome.
É uma total outra visão da psicanálise e de sua experiência que se elabora aqui: uma vez eliminadas as armadilhas e os embustes significantes do sintoma, como abordar o real que está por trás dele?
É preciso para isso, começar de cada círculo do nó antes mesmo que eles sejam amarrados, isto é, o      que é impossível, partir do ser vivente antes mesmo que ele encontre a linguagem. A experiência analítica que vai abordar o sintoma, se orienta sobre o encontro inaugural e contingente da língua com o corpo vivente, do Um significante com o gozo, esse acontecimento de corpo primordial que vem interromper a quietude do gozo absoluto. Esse encontro primordial introduz uma repetição, uma reiteração[1] de gozo sem sentido que assinala a singularidade do gozo de cada parlêtre. O sinthome é a escritura desse encontro pela marca no corpo.
É essa reiteração de gozo e esse encontro primordial que interessam à experiência analítica no ultimíssimo ensino de Lacan.
“A psicanálise parte sempre da associação livre, das formações do inconsciente e da interpretação do sentido, mas não para se instalar aí, e sim para apontar o sem-sentido do Um, ao qual todo parlêtre está submetido fundamentalmente em sua repetição”. [2] Toda a questão está agora em saber como manejar a letra mais além do sentido, uma vez esvaziado o campo do sentido, o que Miller chama de “uma prática sem verdade”, enquanto tentativa de alcançar pela letra o encontro inicial e contingente do significante com o gozo.
Quando Miller propõe um novo tipo de interpretação como leitura do sem-sentido, ele faz referência a ‘Radiofonia’ onde Lacan sublinha que o Judeu é “aquele que sabe ler”[3], “que pela letra se distancia de sua fala, encontrando ali o intervalo, para aí se jogar com uma interpretação” [4].  O judeu “toma o livro ao pé da letra” para “extrair do texto um dizer outro”[5].
Um dizer não é um dito. O dito está do lado da verdade, da emergência do inconsciente, enquanto o dizer tem a ver com a lógica, ele não é uma demonstração, mas antes uma construção. O dizer é da ordem do ato, ele é sem-sentido.
Lacan dá, em Radiofonia, detalhes sobre o trabalho com a letra na exegese bíblica para “extrair do texto um dizer outro”: “A colusão significante, tomada em sua materialidade (espera, acordo, arranjo), a “combinação significante”, “torna obrigatório uma certa vizinhança, (não desejada), às “variantes gramaticais” que impõem “uma escolha desinencial”[6].

Em seu livro “A letra e o sentido na exegese judaica”[7], David Banon trata das modalidades particulares de leitura. Ele insiste na separação, o corte entre o texto e a palavra profética, a “palavra bruta”, palavra de Deus, palavra do “é assim!”, profecia não comentada; uma vez a palavra morta, permanece o texto onde a voz é depositada. Por trás do texto escrito, a exegese tenta encontrar a palavra viva: “Desfazer o silêncio do texto para captar o sussurro de sua oralidade”; buscar essa relação de diálogo inicial entre Deus e o homem.  Há então no trabalho de leitura bíblica judaica, o objetivo de um real, o real da voz de Deus e de sua palavra. David Banon dá nesse livro um certo número de detalhes sobre esse modo de leitura que faz “apelo à densidade da letra hebraica”. A Letra está aí para ser tomada no sentido mais radical, e não palavra por palavra. O alfabeto é interrogado em sua expressão mais simples, cada letra constituindo um modo de signos. Ler é um ato altamente subversivo que faz desatar o texto, o fragmenta, o espalha, faz “sobrecarregar, solicitar ao texto, perscrutar as letras”.
Dessa escrutinização da letra, David Banon dá algumas ocorrências: a exegese judaica é antes de tudo a disjunção entre o signo e o sentido, entre o significante e o significado, entre o signo e o referente. Ele assinala a ênfase dada à inversão, às combinações, aos acrônimos, às anamorfoses. “O texto nunca descansa”.
A psicanálise tem muito a aprender com esse modo de leitura.
Para acessar o real da experiência, que Miller localizou, em seu curso de 2011, do lado da existência, para diferenciar da essência e do ser, é preciso tomar a linguagem no nível da escrita – é isso o que aproximamos com a matemática – uma escrita que seja um manejo da letra, do traço (o significante é isolado da significação), uma escrita que leva à leitura e não à escuta.
Há no pensamento judeu uma dupla dimensão, duas versões de leitura, a versão poética que visa a busca infinita do sentido e da verdade, e a versão literal, sem sentido. Esses dois sistemas de leitura sempre coexistiram.
É para essa última apreensão da leitura que Lacan chama a atenção quando diz que o judeu é aquele que sabe ler: ele faz uma leitura que se orienta pela materialidade da escrita da letra.
Na experiência analítica, esse saber ler interpretativo deve visar o encontro inicial da linguagem com o corpo em todo ser humano, que é o coração do sinthome. Eis aí toda uma pesquisa apaixonante em perspectiva para o futuro da psicanálise.

Notas

[1] Miller, J.-A. “O ser e o Um”, curso de A Orientação Lacaniana, ocorrido no departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, 2011, inédito
[2] id.
[3] Lacan, J. Radiofonia em Outros Escritos, Zahar, 2008, p. 427
[4] Id, p.427
[5] Id, p.428
[6] Em linguística, a desinência é o elemento variável do radical de uma palavra.
[7] Banon D., Entrelacs. La lettre et le sens dans l'exégése juive, Paris, éd. du Cerf, coll.« La nuit surveillée », 2008

Tradução: Arryson Zenith Jr.


Texto original extraído de: Revista Quarto, nº 104, Bélgica, 2013, 96-97

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