quinta-feira, 23 de maio de 2019

A carta roubada, de Edgar Allan Poe e a psicose ordinária

O conto se passa em Paris, onde Sr. Dupin, que estava em casa, recebe a visita do delegado da polícia parisiense, Monsenhor G., em busca de conselhos para solucionar o roubo de uma carta. Conta que a carta fora roubada pelo Ministro D., de dentro de sua carta e a descreve. O delegado fez todas as revista e buscas sugeridas pelo detetive, sem sucesso.

Depois de um mês, o delegado volta deprimido por não ter solucionado o crime e diz a Dupin que pagaria uma quantia alta a quem o ajudasse a solucionar o caso. Então, Dupin surpreende a todos, pede que ele preencha o cheque e lhe entrega a carta.

Dupin diz que o delegado subestimou o Ministro pensando que ele esconderia a carta de maneira rebuscada. Foi visitar o Ministro e considerou que ele poderia ter adotado uma outra maneira para esconder a carta. Enquanto conversava com ele observou um porta-cartas pendurado no meio da lareira, com um documento que reconheceu ser a carta roubada, bem à vista de todos, somente com uma mudança no selo, o que lhe conferia um disfarce.

Ao sair do apartamento esqueceu intencionalmente sua tabaqueira com a intenção de voltar no outro dia. Fez uma cópia exata da carta e voltou para buscar sua tabaqueira. Combinou com um amigo de simular, em uma hora exata , um tiroteio na rua, e quando o Ministro foi a janela observar o que se passava, Dupin trocou a carta e na cópia colocou uma frase que remetia a uma vingança por uma peça que o Ministro lhe pregara em Viena.

O que nos interessa nessa carta, e que Lacan nos revela no Seminário "A carta roubada", nos Escritos, é que a carta estava lá a todo tempo, à vista de todos. Como nos diz Ansermet (2016), fazendo uma analogia a psicose ordinária, é que "frequentemente não vemos o que é o mais evidente" (p.2). Isso se aplica às psicoses ordinárias, na medida em que a sintomatologia apresentada por esse sujeitos pode ser interpretada, à primeira vista, como uma neurose, mas se analisarmos de modo mais aprofundado esses índices, podemos consider-lá como uma nova forma de apresentação da psicose no contemporâneo, em que não observamos mais uma psicose florida, um desencadeamento propriamente dito, e sim pequenos indícios, manejos particulares da linguagem, uma desinserção social e uma relação de desconexão com o corpo. Como afirma Miller (2010, p.13) "vocês devem pesquisar todos os pequenos indícios. É uma clínica muito delicada.  Frequentemente é uma questão de intensidade, uma questão de mais ou menos. Isso os orienta para o que Lacan chamou de “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”.

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