quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Formação em Psicanálise - O que é um cartel?

Nas escolas de formação em psicanálise que seguem o ensino de Lacan existem os Cartéis, que visam manter de forma permanente o trabalho de investigação da teoria e da clínica psicanalítica.

Retirado do site da EBP (Escola Brasileira de Psicanálise):

O que é um Cartel?*
O cartel é uma invenção de Lacan que visa manter na Escola um trabalho permanente de investigação em relação à psicanálise. Esse dispositivo adota como princípio a elaboração apoiada em um pequeno grupo, cria, porém, por sua estrutura e funcionamento, mecanismos que possam conter os efeitos grupais.
Em 1964, Lacan apresenta pela primeira vez o cartel [1]. Entretanto, alguns anos mais tarde, ele fornece com maior precisão os termos de sua formalização:

“Primeiro – quatro se elegem para prosseguir um trabalho que deve ter seu produto.
Esclareço: produto próprio de cada um e não coletivo.
Segundo – a conjunção dos quatro se efetua em torno do Mais-Um que, embora possa ser qualquer um, deve ser alguém. A seu cargo estará o velar pelos efeitos do empreendimento e provocar a elaboração.
Terceiro – para prevenir o efeito de cola, deve acontecer a permutação, no término fixado de um ano, dois no máximo.
Quarto – nenhum progresso se esperará, salvo o de por a céu aberto, periodicamente, tanto o resultado quanto as crises de trabalho.”[2]

[1]Cf. Lacan, J. “Ato de fundação”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003.
[2]Lacan, J. D’écolage, 11 de março de 1980

Quem faz Cartel? 
Os cartelizantes são tanto aqueles que praticam a psicanálise como qualquer um que deseje estudá-la. O que une os membros de um cartel é terem interesse pela investigação de um tema comum. Cada cartelizante delimitará uma questão que se agrega a esse tema comum de onde advém o título do cartel. Cada cartel se compõe de no mínimo três cartelizantes e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida.


Qual a função do Mais-Um?
O Mais-Um, que é escolhido pelos cartelizantes, também é um participante do cartel, mantendo, como os demais, uma questão dentro do tema mais amplo de trabalho. Ele, porém, deverá sustentar uma função específica de zelar pelo trabalho dos cartelizantes, incentivando a elaboração de cada um e favorecendo a exposição dos produtos do cartel. O Mais-Um é também o elo com a Escola e responde pela orientação lacaniana no cartel.


O que um Cartel visa?
O “produto de cada um” e um não um produto coletivo é o que se espera ao final de um cartel. Com esse produto pretende-se que cada cartelizante possa constatar e transmitir o que foi tocado na sua relação com o saber analítico. Os produtos do cartel podem ser expostos em espaços diversos da Escola, sendo a Jornada de Cartéis um momento privilegiado de se colocar a céu aberto as elaborações feitas a partir de tal dispositivo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O que pode a Psicanálise diante do destino para o pior? O Manejo do Tratamento das Toxicomanias no Avesso do Discurso do Mestre.

Uma versão especial do discurso do mestre: A resolução SMAS número 20 de 27 de maio de 2011, cria e regulamenta o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social, adotado pela prefeitura do Rio de Janeiro, prevendo o recolhimento e a internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua que fazem ou não uso abusivo de drogas. Ela viola a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e a Lei de Saúde Mental demonstrando o viés biopolítico da direção de tratamento nesses casos: execução da força policial para a efetuação do recolhimento dessas crianças e medicalização indiscriminada do psiquismo.

O que o sujeito, nesses casos, nos ensina? Um caso clínico de psicose, atendido por Julia Reis no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, nos ensina sobre a relevância de se determinar o estatuto do recurso à droga nesses quadros em que o NP revela seu limite diante do imperativo mortífero de satisfação, no avesso desta direção higienista de tratamento reduzida à exclusão social e à medicalização que despreza a estrutura em jogo.
Clarice teve diversas internações no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, em Niterói. Foi internada tanto no Serviço de Internação para Usuário de Álcool e Outras Drogas (SAD), como no Serviço de Internação para Agudos Feminino (SIAF), dependendo da avaliação dos médicos e psicólogos da emergência. Assim, quando achavam que o uso de crack era excessivo e a paciente poderia apresentar sintomas de abstinência a internavam no SAD, e quando entendiam que os sintomas psicóticos estavam mais agudos a internavam no SIAF. As internações de Clarice foram sempre a pedido da mesma, no momento em que pensava que podia morrer por causa do uso de crack (justificado na declaração de que se continuar assim vou morrer; estou pele e osso). O uso de drogas cumprira, para ela,
a função de reduzir o gozo mortífero das alucinações auditivas (a voz do Diabo). No entanto, verifica-se o fracasso de tal função na medida em que o uso de drogas a empurra para uma posição subjetiva em que só pode existir como dejeto para o Outro, marcando seu destino para o pior, conforme assinalado por Briole (2009) em Toxicomania. Un Lazo Social entre otros?, quando chegava à internação, estava sempre muito emagrecida, suja e machucada.
O que pode uma psicanálise? Sua última internação evidencia um processo de estabilização do quadro psicótico com o início de uma construção delirante através da bíblia: Deus enviava mensagens para que se afastasse dos ímpios - localizados nas pessoas com quem andava (traficantes e usuários de drogas) – e se protegesse seguindo os preceitos da igreja. Uma questão institucional revela como a internação pode se apresentar como uma demanda imperativa quando não se leva em consideração seu próprio funcionamento no caso único em questão.
No primeiro dia em que fez uma licença para ir ao local de tratamento extra-hospitalar a paciente só retorna dois dias depois para pegar medicação junto com uma profissional de saúde da equipe da enfermaria. Houve, então, uma divergência em relação à direção proposta pelos serviços: enquanto a exigência do Ambulatório era de retorno da paciente à internação, por ter fugido, a responsável pelo caso, ancorada no discurso analítico, defendia a possibilidade do tratamento extra-hospitalar pautada: 1. na escuta da decisão da paciente de se internar nos momentos em que a morte fazia seu anúncio; 2. na incidência do trabalho de formação delirante na regulação dos efeitos mortíferos da droga que a fixava na posição de dejeto para o Outro.
A psicanálise abre a via para uma relação com o gozo que habita a experiência subjetiva no avesso da proposta higienista do mestre contemporâneo. Sua ação
consiste em dar um contorno de humanidade referindo-o à linguagem em uma política de tratamento de substituição da droga pela palavra. Clarisse nos ensina que a política da palavra lhe permitiu a formação de um delírio para o tratamento de suas alucinações, lá onde a internação compulsória representaria o exílio do sujeito na posição de dejeto.
 Cartel: Cláudia Henschel de Lima (mais-um), Julia Reis da Silva Mendonça José Alberto Ferreira, Vera Aragon e Adriana Lipiani.

domingo, 18 de setembro de 2011

Novidades sobre o tratamento de usuários de crack

A Gazeta Online
Alucinados, eles vagam pelas ruas e não respeitam ninguém. Suas vidas resumem-se à busca pelo seu único objeto de desejo: o crack. E eles já são tantos, que não é mais possível ignorá-los como se pertencessem a um submundo que não nos atinge, pois estes ganharam áreas nobres e periferias e viraram um problema que, de uma forma ou de outra, toca a sociedade e é de responsabilidade de todos.
Além do sofrimento de famílias e amigos, a epidemia de crack - que já foi a droga dos pobres, mas hoje está em todas as classes sociais - significa aumento dos índices de violência, degradação do espaço urbano e toda uma geração perdida de crianças, que já nascem viciadas ou abandonadas pelos pais.
Somente no ano passado, o Estado gastou mais de R$ 2,3 milhões em 2.817 atendimentos e internações de viciados. Parte da verba foi destinada ao Hospital dos Ferroviários, em Vila Velha, onde funcionam, desde 2009, oito leitos destinados a crianças e adolescentes usuários de drogas.
O serviço é voltado para internação e desintoxicação, e 80% dos pacientes são meninos, com em média 16 anos. São garotos como João, 17 anos, que aos 14, já fumava maconha e bebia.
Como tantos outros, começou pela curiosidade. E viu a vida mudar de vez quando conheceu o fristo, mistura de crack com maconha. "Eu tinha mais moral, mais conceito. Era popular. Fiquei três semanas sem ir pra escola", conta.
Hoje, depois de duas semanas de internação, o sonho é voltar a ser o menino que era o orgulho da mãe. "Quero estar na igreja, dar um culto e ver minha mãe lá na frente. Ela já sofreu muito comigo", admite.
Do lado do crime
Antes de procurar ajuda, João foi deixando as boas amizades de lado, perdeu a namorada e foi acusado de roubo dentro da escola. Chegou a ser preso, depois de encontrar no tráfico uma alternativa para sustentar o vício.
Na família, não faltaram "parcerias" para o mau caminho. "Meu primo usava pedra, e tenho um tio preso. Quase toda a família do meu pai é viciada ou já cometeu algum crime para usar droga. Queria roupa, queria dinheiro para comprar presente para a namorada. Apelei para o crime."

Tudo acontece em uma velocidade incontrolável. São 12 segundos de alucinação e uma vida inteira de arrependimentos depois. "A pessoa fica na compulsão e faz tudo para obter a droga. Envolve-se em situações de risco, assalto e homicídio. Fica vulnerável, subnutrida, igual a um zumbi", explica Expedito Jorge Tavares, coordenador do Núcleo de Prevenção de Drogas da Polícia Federal no Estado.
Compulsão que Juliano, 17, sabe bem como é. "Uma vez, tomei uma cartela de diazepan, duas cachacinhas e fumei fristo. Tentei matar meu pai e meu cachorro. Dei um soco na TV. E só me controlaram depois que chamaram a polícia", lembra.
Quando mudou de cidade com a família, o garoto não se adaptou. Parou de ir à escola, começou a usar drogas. Pedro chegou a roubar para conseguir o crack. Não tinha forças, sozinho, para deixar as pedras de lado, mas pôde contar com a família.
Depois de 21 dias de internação, ele deixou o Hospital dos Ferroviários e foi direto para um projeto que conta com tratamento terapêutico. "Minha família me deu apoio quando disse que queria me tratar. Os primeiros dias foram sinistros, queria quebrar tudo."

Apoio essencial
Ter o apoio da família, como Pedro, pode fazer a diferença entre conseguir ou não derrotar o vício. "Nem sempre a família participa, o que seria fundamental para ajudar o usuário a enfrentar o mundo lá fora. Só a internação não é solução", ressalta a coordenadora da UTCA do Hospital dos Ferroviários, Bárbara de Oliveira.
Como explica a socióloga e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Marcia Rodrigues, a família deveria ser a primeira instância para dar referência a esses jovens. Mas não é isso que está ocorrendo, o que acaba produzindo uma geração perdida.
Como Simone, 38, que hoje, após várias recaídas, comemora cinco meses sem usar o crack, mas vê seus erros cobrarem um alto preço: usou a droga durante a gravidez, abandonou os filhos pequenos por causa do vício e hoje vê a filha mais velha ir pelo mesmo caminho.
"Perdi meus filhos, né? Eles afastaram-se, e isso é muito triste. Agora vejo minha filha de 15 anos nessa. Ela usava entorpecentes escondida e só soube quando ela foi presa, há três anos", lamenta.
Na primeira vez, a menina foi detida na escola, guardando uma arma para o namorado. Na segunda, estava traficando. Chegou a engolir quatro pedras de crack para não ir para a delegacia. Acabou no hospital.

Filhos: as vítimas
A dependência de filhos de mães viciadas em crack é ainda mais perigosa. O especialista em Dependência Química João Chequer explica que, desde que estava no útero, a filha de Simone já estava acostumada a utilizar o crack.
"Quando ela usou a droga aos 12 anos, se identificou com aquilo de forma maligna. Ela sente que já usou bioquimicamente o crack e a ligação dela com a droga é imediata e definitiva. É incontrolável", diz João Chequer.
Simone espera por dias melhores, apesar de tudo. "Agora minha filha está em tratamento, assim como eu", comemora. Mas a culpa não vai embora: "Se estivesse do lado dela, poderia ter sido diferente, ela se sentiria mais segura. Eu tive culpa, sim", sentencia.

*Os nomes dos entrevistados foram trocados para preservar as identidades

33% - dos usuários de crack morrem nos primeiros 5 anos de consumo, segundo estudo da Unifesp

A fala desses sujeitos revela a importância dos processos identificatórios com as figuras paternas para sua constituição subjetiva. Com a queda do poder paterno na atualidade, famílias fragmentadas, valorização dos objetos em detrimento das pessoas, essas crianças e adolescentes acabam usando drogas para pertencer a certo grupo social, ou mesmo para ter acesso a um gozo da ordem do excesso.
Diante desse panorama, o psicanalista Romildo do Rêgo Barros, em Opção Lacaniana nº46, nos coloca: "Poderão os psicanalista, a partir do que aprendem nas suas práticas, demonstrar que é possível a produção de novos significantes-mestres - ou de novos contratos -, após a dura experiência de falência dos ideais? Esta seria uma alternativa ao pior"